Sob impacto da crise, ressurgem anticomunismo e antissemitismo primários. E a extrema direita, que governa Hungria, ensaia uma saída populista.
Os veteranos estonianos da SS, aproximadamente 12 mil homens em 1944, há anos glorificam sua participação na guerra, em atos oficiais aos quais convidam ex-SS e jovens neonazistas de outros países. Mas a primeira lei em favor dos “lutadores pela liberdade” será a de março.
Algo parecido acontece na região ocidental da Ucrânia, onde os combatentes da divisão “Galizia” das SS se glorificam de seus atos há anos.
Em Budapeste, capital da Hungria, grupos de ultra-direita da Alemanha, Eslováquia, Bulgária e Sérvia reúnem-se a cada 11 de fevereiro, para comemorar o chamado “dia de honra”. A jornada recorda o fim da batalha pela cidade, na qual um exército de 100 mil soldados alemães e húngaros, cercados por soviéticos, manteve posição durante 52 dias, em 1945.
“O ocidente se defendeu das ondas vermelhas das estepes da Ásia com um imenso tributo de sangue e heroísmo”, afirma, neste ano, a convocação de grupos neonazistas alemães para o ato de Budapeste.
Os cerco de Budapeste teve como consequência a aniquilação de grande parte dos judeus que ainda permanecia na cidade, nas mãos dos fascistas húngaros.
“Em muitos países do antigo bloco oriental está se abrindo um caminho para uma versão unilateral da História, construída sob medida pela ultra-direita avança”, constata o jornalista alemão William Totok. O fenômeno supera o meramente histórico para se manifestar em uma crescente hegemonia política direitista, que parece seguir as pegadas dos anos trinta, quando a região esteve dominada por regimes ultradireitistas
Regresso a um passado conhecido
Os países bálticos, Romênia, Bulgária, Hungria, o oeste da Ucrânia e a Polônia católica e conservadora, voltam a se apresentar nos papéis que representaram às vésperas da II Guerra Mundial.
Naquele conflito, seis países europeus foram aliados militares de Hitler: Finlândia, Hungria, Romênia, Itália, Eslováquia e Croácia. Apenas a Finlândia, que não se identificou com a ideologia racista que animava a guerra, manteve um sistema democrático dentro do bloco. Contou, até o final, com soldados e oficiais judeus em seu exército.
Outro grupo de países oficialmente “neutros” ou ocupados, como Espanha, França, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Noruega, enviaram voluntários para lutar com Hitler.
Nos países bálticos, no Cáucaso do norte, na Polônia, Ucrânia e Bielorrússia (e mesmo em partes da Rússia), as lembranças históricas do domínio imperial russo, da repressão e deportação stalinistas, da coletivização agrária, além da questão nacional, traduziram-se em lutas ativas contra a União Soviética (URSS) de Stálin. Hitler usou-as em seu favor de diversas maneiras.
Lançada por Vaclav Havel e outros dissidentes anticomunistas do antigo bloco oriental, a chamada “Declaração de Praga”, de junho de 2008, abriu espaço para que muitas tendências internas, nesses países, equiparassem nazismo e comunismo. O documento foi parcialmente aplaudido pela União Europeia.
Com o pacote do anticomunismo, voltam o antissemitismo e o desprezo pelos ciganos. Na Lituânia, por exemplo, desapareceu de vista a aniquilação de 95% dos 220 mil judeus locais, entre 1941 e 1944. Os alemães davam as ordens, mas a maioria dos executores do extermínio foram voluntários lituanos. A memória dessa colaboração criminosa não existe.
Para construir uma consciência nacional “limpa” e “sem manchas”, os lituanos, que sofreram muito nas mãos dos soviéticos, usam como escudo seus 30 mil concidadãos deportados para a Sibéria, em 1941; e as dezenas de milhares de novas deportações ou execuções, ao final da guerra. Estes fatos lastimáveis, no entanto, não os livram dos 195 mil cadáveres judeus que têm no armário.
No Museu Nacional de Vilnius, a capital, a narrativa salta o período entre 1941 e 44, para não se deter nos anos-chaves do holocausto e colaboração. Desde junho de 2010, o código penal lituano criminaliza o questionamento do “genocídio duplo”.
Em 2008, estabeleceu-se a proibição de símbolos nazistas e comunistas, mas um tribunal de Klaipeda – a terceira maior cidade do país – decidiu, em 2010, que a suástica pertence ao “patrimônio cultural lituano”.
Devido à mesma tentativa de equiparar nazismo e comunismo, na Romênia uma organização não pode se denominar “comunista” sem arriscar-se a ser considerada “ameaça à segurança nacional”. O governo romeno prepara uma lei que proíbe atos públicos que “propaguem ideias totalitárias, ou seja, fascistas, comunistas, racistas ou chauvinistas”.
Na República Checa, o Partido Comunista está ameaçado de cair na ilegalidade pela mesma ideia. A situação na Polônia ficou clara em dezembro passado, quando o jornalista polaco Kamil Majchrzak, redator do Le Monde Diplomatique, pediu, durante uma conferência que ofereceu em Berlim, para não ser fotografado, pois estava ameaçado pela extrema direita em seu país.
Na Hungria, os membros do ex-Partido Comunista, muitos deles agora no Partido Socialista, poderão ser perseguidos judicialmente por “delitos comunistas” cometidos antes de 1989, de acordo com as novas normas introduzidas pelo governo de Viktor Orban.
Revanchismo nacional e questionamento de fronteiras
A nova legislação eleitoral adotada por Budapeste, em favor dos húngaros residentes no estrangeiro – ou seja, as minorias húngaras na Eslováquia, Sérvia e Romênia – é um convite à revisão das fronteiras. Sugere que o país questiona o Tratado de Trianon, que, depois da Primeira Guerra Mundial, tirou do país quase um terço de seu território.
Tal revisionismo é impensável, ou muito difícil, no quadro da União Europeia. Por isso, é preciso acompanhar as tendências anti União Europeia que começam a aflorar ao calor da crise.
A degradação sócio-econômica despertou o sonho da “Grande Hungria”, explica o jornalista e estudioso em cultura nacional, Bruno Ventavoli. “Os valores da democracia, do pluralismo, do diálogo ou da diversidade parecem supérfluos, quando na vida cotidiana não há dinheiro para fazer compras ou pagar as contas. Nasce a tentação de retroceder sobre si mesmos, sonhando com uma Grande Hungria, adornada com a suspeita de vitimização pelas feridas da História; desde as guerras contra os turcos até a invasão soviética, passando pelo Tratado de Trianon”, diz Ventavoli.
Os reveladores critérios da União Europeia
Na sede da União Européia, Bruxelas, não aconteceu muita coisa enquanto o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, limitava-se a restringir a democracia com medidas e projetos que atentam contra a liberdade de imprensa ou a divisão de poderes. Também não houve queixas enquanto expurgava, do governo e dos meios de comunicação, vozes críticas. O Partido Popular Europeu, a que pertencem os partidos que governam a França e Alemanha, não se incomodou com isso.
O problema começou de verdade quando Orban anunciou medidas como a mudança do sistema fiscal, a nacionalização dos fundos privados de pensões, a concessão, ao Parlamento, de direito de veto sobre a legislação europeia e, principalmente, a submissão do Banco Central ao controle direto do governo. Foi então que Bruxelas afirmou que “os valores europeus” estão em perigo na Hungria e começou a tecer, junto com o FMI, o objetivo de afastar Orban do governo.
Os bancos austríacos estão muito expostos a uma eventual crise da economia húngara, perto de quebrar. Ainda que a Hungria não esteja na zona do euro, essa conexão com a Áustria é vista com enorme temor.
Mas promover um terceiro “golpe tecnocrático” na Europa, depois do grego e do italiano, é complicado, aponta o diário húngaro Népszabadság. “Não é fácil destituir um primeiro ministro do exterior quando foi eleito, conta com dois terços das cadeiras do Parlamento, e a oposição está fragilizada”, observa.
Orban chegou ao poder em 2010, em consequência do desencanto com uma coalizão de governo anterior, encabeçada pelos socialistas. Aquele sentimento também consagrou ao partido fascista Jobbik como terceira força do país. Em 2008, os socialistas e seus aliados haviam iniciado, sob ordens do FMI, duras medidas de ajuste e de desmonte do setor público – que Orban continuou.
O primeiro ministro tem uma sólida maioria apoiando seu projeto retrógrado. Os cem mil húngaros que saíram em 2 de janeiro às ruas de Budapeste contra Orban estão presos entre dois cenários antidemocráticos: o nacional-direitista, de seu governo, e o europeu tecnocrático, de Berlim e Bruxelas. Ambos têm muito em comum – por exemplo, dissolver a democracia e a soberania nacional.
“Além de querer conservar um regime representativo e constitucional, as potências ocidentais e a Comissão Europeia reivindicam que a Hungria adote uma política econômica que não serve aos interesses do povo húngaro”, aponta o filósofo Gáspás Miklós Tamás.
“Decepcionado em muitas ocasiões, o povo húngaro poderia não ver no ‘motivo democrático’ de Bruxelas mais que um mero adorno, algo para disfarçar o peso das medidas de “austeridade” cada vez mais pesadas, impostas pelas potências ocidentais preocupadas com a estabilidade financeira”, diz. Essa contradição torna “muito frágil” a situação da oposição húngara, conclui Tamás.
A extrema direita pode liderar
Questionar a “independência” do Banco Central (ou seja, sua submissão às finanças privadas) e as políticas de “austeridade” da União Europeia é um perigoso precedente de rebeldia, um desafio à democracia submetida ao mercado, propugnada por governantes como Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. O paradoxo é que tal precedente está sendo aberto não por um governo de esquerda – mas de extrema-direita. A mensagem não pode ser mais clara: na Europa, a crise está criando buracos negros.
O caso húngaro adverte, da forma mais clara, que a extrema direita, com seu desprezo ao fraco, seu racismo, sua xenofobia e sua propensão ao militarismo, está disposta a rechear esse buraco com programas e propostas perfeitamente capazes de conquistar a rua e a liderança.
Fonte: Outras Palavras, tradução de Daniela Frabasile
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