Por Marsílea Gombata, na Carta Capital
Foram quatro anos incansáveis de campanha. O objetivo, em princípio, parecia inalcançável: reverter o quadro de mais de70% dos uruguaios favoráveis à redução da maioridade penal. A espinhosa tarefa, no entanto, deu certo. Chegada a data do plebiscito que decidiria se a nova idade penal iria de 18 para 16 anos, 53% da população disseram “não” nas urnas em 2014.
“Durante um ano e meio, sabíamos, estávamos perdendo”, lembrou a educadora uruguaia Verónica Silveira, militante da comissão #NoaLaBaja, em entrevista a CartaCapital. A ativista à frente da Casa Bertold Brecht, em Montevidéu, veio a São Paulo para uma semana de mobilização de juristas, ONGs e movimentos sociais que buscam alertar contra a redução da maioridade penal no Brasil.
Na segunda-feira 27, a Ação Educativa, a Fundação Perseu Abramo e Fundação Rosa Luxemburgo debateram medidas alternativas ao encarceramento. Na terça 28, ex-ministros, movimentos sociais, juristas, a Human Rights Watch e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs se reuniram em ato na faculdade de direito da USP, no Largo São Francisco. No mesmo dia, ocorreu o 9.º Encontro Ação em Debate.
Já na madrugada de terça-feira para quarta-feira 29, o Amanhecer Contra a Redução da Maioridade Penal, inspirado no exemplo uruguaio, realizou uma ação coletiva em 70 cidades de 23 estados do País. Na quinta-feira 30, o Núcleo de Estudos da Violência da USP reúne às 12h30 o secretário nacional de direitos humanos Pepe Vargas, ex-ministros de Fernando Henrique (José Gregori, Gilberto Sabóia e Paulo Sergio Pinheiro), de Lula (Nilmário Miranda e Paulo Vannuchi), e do governo Dilma (Maria do Rosário e Ideli Salvati) para analisar estratégias políticas contra a aprovação no Congresso.
Confira os principais trechos da entrevista:
CartaCapital: No Uruguai, o que levou ao debate sobre a redução da maioridade penal?
Verónica Silveira: Acredito que foi algo multicausal. Mas podemos apontar como ponto de partida uma legenda em crise que viu ganho político em lançar uma proposta de fácil aceitação pela população, aproveitando a sensação de insegurança pautada pela mídia e a precária situação dos centros de reclusão para adolescentes (com muitas falhas e fugas).
Não era um debate instalado na sociedade, mas a proposta do Partido Colorado de levar adiante um plebiscito para a redução da idade penal para 16 anos e toda a ajuda da mídia para gerar a sensação de que os adolescentes eram culpados pela insegurança colocaram-no em pauta.
Em 2010, 1.100 menores fugiram de centros de reclusão, enquanto em 2012 foram 13. Com episódios como o de um garoto de 16 anos que matou um funcionário do restaurante da rede La Pasiva, em 2011, a mídia disseminou a ideia de que esses menores eram impunes e deveriam ser julgados como adultos. Quem esteve à frente do recolhimento das assinaturas para o plebiscito foi Pedro Bordaberry, candidato à Presidência pelo Partido Colorado e filho do nosso primeiro ditador, Juan María Bordaberry.
CC - Como funcionou o trabalho de vocês e como se deu a formação do grupo #NoaLaBaja?
VS – Foi uma campanha longa e diversa. Um mês depois do início do recolhimento de assinaturas, em 2011, movimentos sociais, a central sindical Plenário Intersindical de Trabajadores – Convención Nacional de Trabajadores (PIT-CNT), organizações de defesa dos direitos humanos, como El Abrojo, e a Federación de Estudiantes Universitarios de Uruguay se uniram em torno de um argumento conjunto.
No terceiro ano de campanha, a presença de partidos políticos foi mais marcante. Separadamente, no entanto, apenas Julio Bango, deputado do Partido Socialista, que é parte do Frente Amplio, se pronunciou ao nosso lado. Atores, cantores e sociólogos se posicionaram e fizeram um vídeo contra a redução da maioridade penal.
CC - No início do processo de discussão, cerca de 70% dos uruguaios eram favoráveis à redução. Quais foram as estratégias utilizadas para, três anos depois, 53% dizerem “não” à medida?
VS - Foram muitas estratégias complementares. Achávamos que deveríamos unificar os argumentos, mas não ficar só nisso. Sabíamos que esses argumentos até poderiam fazer alguma diferença no âmbito acadêmico e de militância, mas não na conversa com a população em geral. Vimos que deveríamos chegar a diferentes públicos em todo o país.
Foram intervenções, como o amanhecer (ocupação do espaço público com material de campanha), música ao ar livre, e até mesmo o Teatro Legislativo, uma criação de Augusto Boal, (em que o espectador/cidadão é o legislador). Foi um dos eixos mais interessantes da campanha, que era sair da crítica e da lógica da vingança e do medo para um exercício de proposição.
No período inicial de um ano e meio, sabíamos, estávamos perdendo. Mas depois, com a diminuição das fugas de menores e de delitos cometidos por eles, foi diminuindo também a fúria da sociedade. Esse cenário melhorou as perspectivas e ajudou a convocar atores que geralmente não se pronunciam, como a Igreja e movimentos de habitação como o Techo por Mi País dizendo não à redução. Também se pronunciaram o Frente Amplio e o Partido Blanco, de direita. Foi uma presença política que ampliou as possibilidades e permitiu que saíssemos da lógica de esquerda e direita. Um salto importantíssimo para que toda a sociedade soubesse do tema.
CC – De que maneira, em sua opinião, a grande imprensa contribui para a disseminação de posturas condenatórias?
VS – No Uruguai, ela teve um papel importante para angariar apoio cada vez maior da população a favor da redução. A reiteração de cada matéria sobre adolescentes cometendo delito, todos os dias, foi gerando a sensação de que eram "impunes", levando a sociedade a crer na proposta de julgá-los como adultos enquanto solução.
Nos dois meses em que seis adolescentes foram autores de crimes violentos no Uruguai, assunto que não parou de ser dito pela mídia, oito mulheres foram assassinadas por violência de gênero no país e isso não foi noticiado. Mas a mídia não é a única responsável. As políticas públicas não têm quase trabalhado com outras formas de resolução de conflitos sem a intervenção judicial e punitiva, nem em outras formas de reparação alternativas.
CC – Como esses menores devem ser tratados? O que deve ser pensado em relação a eles a curto e a médio e longo prazo?
VS – Não sei se temos a resposta para isso ainda. Há muitas outras opções caminhando em diferentes lugares, e deveríamos conhecê-las mais para poder escolher. Creio que, como diz nossa Constituição, a privação da liberdade deveria ser a última alternativa. Acredito nas boas experiências de medidas alternativas à privação, com foco na educação. Esses adolescentes merecem o cumprimento de seus direitos, um trato digno.
Quando tivermos menos desigualdade social, teremos menos preocupações com menores que delinquem. Dos nossos adolescentes, apenas 6% são delinquentes. E o sistema prisional tem demostrado não ser a melhor forma de solucionar os problemas de insegurança ou violência, seja com adultos ou adolescentes. Em Nova York, por exemplo, reduziu-se a idade penal para 16 anos. Mas violência aumentou, e agora querem voltar atrás. Acho que acreditar nesse sistema como solução é não conhecê-lo.
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