segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Brasil e Paraguai: 150 anos depois da guerra, ferida ainda aberta

Batalha de Avaí, quadro de Pedro Américo no Museu Nacional de Belas Artes
Por Filipe Figueiredo, no Opera Mundi

Em dezembro de 2014, celebra-se o 150° aniversário do maior conflito armado da América do Sul, conhecido no Brasil como Guerra do Paraguai, travada entre 1864 e 1870. Também chamado de Guerra da Tríplice Aliança ou Ñorairõ Guazú (“Guerra Grande”, em guarani), o conflito deixou um legado de cerca de meio milhão de mortos, entre soldados e civis. Um número preciso jamais será obtido, mas as estimativas das mortes civis paraguaias flutuam entre 300 mil e um milhão; em números relativos, algo entre 40% e 90% de sua população. O clichê diz que deve-se estudar a história para compreender o presente. Cento e cinquenta anos depois, em uma América Latina em desenvolvimento, com o Cone Sul do continente em ritmo de integração, uma ferida permanece aberta, originada na guerra.

A relação do Paraguai com o Brasil possui duas facetas. O país possui a quarta maior fronteira terrestre com o Brasil, foco de intenso intercâmbio econômico. Na última década, o comércio bilateral cresceu cerca de 300%, chegando ao patamar de US$ 4 bilhões em 2013. As exportações brasileiras para o país quintuplicaram. Hoje, o Brasil exporta cerca de US$ 3 bilhões anuais para o Paraguai, e os investimentos estrangeiros diretos brasileiros estão em segundo no ranking de capital estrangeiro no país. Mesmo no desenvolvimento interno paraguaio, o Brasil representa elemento essencial. Ano passado, foi inaugurada a linha de transmissão que leva energia da usina de Itaipu à região de Assunção, financiada pelo Brasil por meio de projeto do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem).

A Usina de Itaipu é talvez o principal marco das relações entre Brasil e Paraguai pós-guerra. A normalização dessa relação se deu apenas na década de 1940; as décadas anteriores, embora de relação amistosa, foram marcadas por repetidas remarcações fronteiriças e negociações dos termos da paz de 1872. Em 1941, Getúlio Vargas realiza a primeira visita de um Chefe de Estado brasileiro ao Paraguai, perdoa o restante das dívidas de guerra e inicia o processo de devolução de documentos e troféus do conflito. Em 1965, a inauguração da Ponte da Amizade consolida essa relação pacífica que culmina, em 1973, com o Tratado de Itaipu, que estabelece a construção da hidrelétrica binacional. Em 1991, o Tratado de Assunção, capital paraguaia, estabelece o Mercosul com a expectativa de marcar um novo momento nas relações políticas do Cone Sul.

A outra faceta demonstra distensão e também como o conflito não foi totalmente superado. Em 1980, o general João Baptista Figueiredo, então presidente, continua o processo de devolução de documentos históricos e de troféus de guerra, incluindo a espada de Solano López, líder paraguaio de 1862 até sua morte na batalha de Cerro Corá, em 1870. A restauração de troféus e documentos históricos da guerra ao Paraguai é matéria extremamente sensível na população e na política paraguaia. Hoje, o último grande troféu da guerra e razão de disputa é o canhão El Cristiano. O antigo canhão paraguaio, capturado pelas forças brasileiras, hoje é tombado como patrimônio histórico brasileiro e está no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Seu nome, traduzido como O Cristão, é explicado pela sua origem: suas doze toneladas de bronze vieram dos sinos das igrejas paraguaias.

Em 2009, o Paraguai consultou o Brasil sobre mais essa devolução de um objeto histórico da Guerra do Paraguai. O então presidente Lula encaminhou o tema ao Ministério da Cultura, mas o tema nunca avançou mais do que o suficiente para gerar polêmica e debate entre historiadores, militares e a sociedade. A importância da peça fica clara em declarações de políticos paraguaios. Em março de 2013, disse o então presidente do Paraguai, Federico Franco: "Não haverá paz nem entre os soldados nem entre a sociedade paraguaia enquanto não for recuperado o canhão Cristiano'", em ocasião de cerimônia que homenageia os paraguaios mortos na guerra. Federico Franco assumiu a presidência paraguaia após o atribulado processo de impeachment, ou deposição, de Fernando Lugo, em junho de 2012 - o que está diretamente ligado ao segundo aspecto da relação entre Paraguai e Brasil.

Com sua economia extremamente ligada, até codependente, ao Brasil, o Paraguai não possui uma postura de confiança ou aliança com Brasília. Em 2005, os valores pagos pelos brasileiros a Assunção pelo seu excedente de energia elétrica produzida em Itaipu foram renegociados de forma agressiva, com setores da sociedade paraguaia afirmando que o Brasil “passava a perna” no Paraguai. O país, especialmente seu legislativo conservador dominado pelo Partido Colorado, também condenou, e condena, a postura brasileira durante a crise institucional vivenciada pelo país em 2012, especialmente pelo fato do Paraguai ter sido suspenso do Mercosul por supostamente violar sua cláusula democrática; com a ausência de Assunção no processo, a Venezuela foi alçada ao posto de membro pleno do bloco.

O tema ainda é motivo de protestos paraguaios, embora tenha sido oficialmente resolvido em agosto de 2013, com um reunião os presidentes Horácio Cartes, eleito no Paraguai naquele mês, Nicolás Maduro, da Venezuela, e Dilma Rousseff; o encontro foi realizado à margem da Cúpula da Unasul. Somam-se aos dois episódios citados a disputa social interna ao Paraguai, entre paraguaios e “brasiguaios”, brasileiros que residem na região fronteiriça. A disputa por terras já deixou vítimas fatais. A mesma extensa fronteira terrestre que favorece o comércio está também diretamente relacionada ao tráfico de drogas e de contrabando na região, outro problema social que afeta as relações entre os dois países.

A sociedade paraguaia também se queixa do que classifica de intervenções brasileiras na política interna paraguaia. O presidente do Paraguai deposto em 1999, Raúl Cubas Grau, o general Lino Oviedo, implicado na mesma crise política, e o ditador Alfredo Stroessner, que governou o Paraguai por 35 anos, todos se exilaram no Brasil. A perspectiva alimentada no Paraguai, sobre o Brasil, independente de ser ou não razoável, é a de um império vizinho, que faz comércio e desenvolve, mas também explora e intervêm. A semente dessa perspectiva contemporânea foi plantada na década de 1860, quando da derrota e destruição do Paraguai após ter iniciado o último grande conflito da Bacia do Prata. A demanda paraguaia pelo canhão El Cristiano, antes de ser apoiada ou não, deve ser compreendida. O interesse do Paraguai não é pelo objeto ou pelo seu bronze, é por um símbolo que reafirme sua nacionalidade, ferida 150 anos atrás.

*Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal

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