A luta, história e perspectivas
Por Pedro Campos, da Revista Vírus Planetário.
Neste artigo é passado um histórico e se apresenta o Bom Senso FC, no próximo falaremos da instituição Burocrática chamada CBF, a realidade do Futebol e dos clubes. Fatores a serem modificados, não só pelos jogadores, mas por todos nós enquanto sociedade. Clique aqui para ler a Parte 2.
A trigésima quarta rodada do campeonato brasileiro, iniciada em 13/11/2013, ficará marcada na história do nosso futebol. Não pela conquista do tricampeonato nacional do Cruzeiro – o time mineiro garantiu matematicamente o título que já estava consolidado fazia muitas rodadas – mas sim pelo primeiro minuto de greve dos atletas de futebol do país.
A luta, crítica à Globo e à CBF
Na primeira partida da rodada, entre Grêmio e Vasco, jogadores de ambos os times entraram em campo carregando uma faixa na qual estava escrito “Por um futebol melhor para todos”. Após o apito do árbitro para iniciar a partida, os jogadores cruzaram os braços por um minuto, retardando o início do jogo. Isso surpreendeu a todos, o locutor da Sportv, emissora que transmitiu a partida, ficou o minuto inteiro calado sem entender o que acontecia. A faixa e o gesto se repetiram em todas as partidas da rodada, configurando o caráter nacional do protesto, inédito no futebol brasileiro. Diversas outras manifestações semelhantes aconteceram, tendo destaque para a partida entre São Paulo e Flamengo, onde aconteceu um protesto com a bola rolando.
Na partida das 21:50h, no jogo da TV, entre São Paulo e Flamengo, a faixa era outra: “Amigos da CBF: E o bom senso?”. Quem são os amigos da CBF? Os dirigentes de futebol comprometidos com a confederação, os presidentes das federações estaduais que se mantém no poder há décadas, os empresários de futebol que faturam alto com transações escusas de jogadores, e claro, a Rede Globo, dona dos direitos de transmissão do campeonato e, por consequência, do calendário do futebol. Todos esses lucram financeira e politicamente com o atual estado desse esporte no país.
Um pouquinho de história: Afonsinho e Democracia Corintiana
Em que pese o caráter nacional inédito da organização dos jogadores no Bom Senso FC, existe uma história de luta e crítica social no futebol brasileiro. O “passe livre” conquistado por Afonsinho e a experiência da democracia corintiana foram dois momentos que se conectam com o que acontece hoje na mobilização dos jogadores.
Afonsinho foi um habilidoso meio campo que começou sua carreira no XV de Jaú, do interior de São Paulo. Em 1965, transferiu-se para o Botafogo, do Rio de Janeiro. Cursava Medicina na UERJ e participava do movimento estudantil na época. Tinha posições firmes, de esquerda.
Em 1971, quando era jogador do Botafogo, se recusou a cortar seus cabelos compridos e fazer a barba. Isso foi utilizado como desculpa para Zagallo, então técnico da equipe, barrá-lo do time e até dos treinamentos. Como não jogava, Afonsinho queria trocar de time. Mas havia um porém, os jogadores de futebol só se transferiam para outro clube mediante o pagamento do “passe” (vínculo profissional que atrela o jogador ao clube que o contrata). Com o “passe”, os jogadores não tinham a liberdade de atuar onde desejavam, ficando a mercê dos clubes. Afonsinho iniciou uma batalha contra o Botafogo e conquistou o “passe-livre”, sendo o primeiro jogador de futebol “alforriado” do país.
Entre 1981 e 1983, o Corinthians viveu um período chamado Democracia Corintiana. Um grande time de futebol que contava com jogadores como Casagrande, Wladimir e Sócrates. Este último, conhecido por lutar na campanha das Diretas Já e por posições políticas de esquerda, destoantes do mundo do futebol.
Nessa ocasião, o time do Corinthians vivia uma democracia. Ao invés de um comando de futebol, todos os jogadores, funcionários e comissão técnica discutiam e votavam sobre o que seria implementado. Cada voto tinha o mesmo peso, configurando uma democracia direta em tempos de ditadura militar. Esse time foi semifinalista do campeonato brasileiro de 1981, e bicampeão paulista em 82 e 83. Até hoje é lembrado como um dos maiores times da história do clube.
Tanto o questionamento da ordem dos poderes realizados pela Democracia Corintiana como a luta por direitos trabalhistas de Afonsinho, de alguma forma, se encontram presentes nesse momento em que os atletas de futebol começam a tomar os rumos do esporte em suas mãos.
A organização do Bom Senso FC faz parte desta história de luta, mesmo que tímida, do universo futebolístico. Mas também é fato sintomático do momento que vivemos hoje, quando as pessoas cada vez mais sentem a necessidade de intervir nos rumos dos acontecimentos do país.
Bom Senso FC, avanços e limites.
O movimento Bom Senso FC, de alguma forma, resulta das manifestações populares iniciadas em junho. A partir daí, a população começou a tomar a ação política para si. Os jogadores de futebol também fazem parte desse universo. Como o sindicato de jogadores – à semelhança de muitos outros sindicatos tradicionais – é uma máquina burocrática que faz acordos com os dirigentes, os jogadores da elite do futebol brasileiro perceberam que apenas com sua auto-organização poderiam provocar alterações na realidade do esporte.
Tratados por dirigentes, e muitas vezes por treinadores, como bonecos manipuláveis, os jogadores demonstraram leitura política da realidade e grande capacidade de organização.
O Bom Senso FC, à imagem das grandes manifestações que questionavam as representações, não tem um dirigente e diversos atletas falam em nome do grupo após deliberarem coletivamente as questões. A utilização das redes sociais também foi fundamental para a organização.
O principal questionamento é sobre o calendário do futebol brasileiro. Isso vai de encontro aos interesses da Rede Globo, detentora dos direitos de transmissão da maior parte dos campeonatos. Um calendário mais enxuto ataca diretamente a programação e os interesses econômicos da emissora.
Também há a crítica direta à CBF, visto que o calendário organizado pela entidade leva em conta a televisão e os patrocinadores que a financiam, e não os interesses de jogadores e torcedores.
Além disso, é uma luta por direitos trabalhistas. Os jogadores, mesmo aqueles que ganham fortunas, nunca tiveram seus direitos trabalhistas respeitados assim como poucas vezes tiveram seu direito à manifestação exercido. Nesse sentido, o Bom Senso FC joga papel importante na mudança de consciência dos atletas.
Mas existem limites. No discurso do Bom Senso FC, o futebol é visto como um produto. Deve ser rentável e comandado por gerentes profissionais/ administradores, como as empresas capitalistas em geral.
Nos anos noventa do século passado, o futebol não ficou imune ao vendaval neoliberal. A lógica do espetáculo, a pausterização do jogo e a necessidade de ser um negócio altamente rentável foram transformando o futebol em algo distinto. Os estádios ficaram cada vez mais parecidos, grandes arenas, alterando a experiência de cada forma de torcer em direção a uma atividade telespectadora. Estádios hiperconfortáveis e caríssimos, onde apenas os mais ricos vão assistir (não torcer) uma partida de futebol.
Dessa maneira, o projeto seria que em cada estádio do planeta, a mesma experiência como torcedor fosse replicada. Isso acaba com uma das mais belas manifestações culturais existentes nos países que tem no futebol seu esporte favorito, pois em cada lugar, se torce diferente. Essa pausterização pode ser percebida em todos os estádios/arenas construídos para a Copa do Mundo no Brasil.
Além disso, a lógica da rentabilidade máxima exclui os mais pobres dos estádios. Os ingressos sofrem um processo vertiginoso de encarecimento – vide os valores cobrados no Maracanã para a final da Copa do Brasil, de R$ 250,00 até R$ 800,00 – promovendo uma verdadeira gentrificação dos estádios brasileiros. Com isso, as torcidas passam a se manifestar.
Mais existe uma questão fundamental. Ao passo que exercem mais voz, e pedem para interferir nos processos do futebol brasileiro, os jogadores, ao defenderem a lógica gerencial, acabam reivindicando a hierarquia do mundo do trabalho capitalista. Ou seja, gerentes mandam e cobram total dedicação, e os trabalhadores – jogadores – obedecem.
Essa lógica também tem outro dilema: os times não rentáveis acabam. Ou seja, se os 600 clubes que não participam das principais divisões do campeonato brasileiro não forem empresarialmente sustentáveis – a maior parte não será – o problema dos quinze mil jogadores que são boias frias do futebol não se resolverá, ao contrário, se acentuará. A série de 2011 da ESPN “o Brasil da Copa do Brasil” mostrou um pouco da realidade dos jogadores dos pequenos clubes brasileiros.
Além disso, apesar de o passe dos jogadores terem acabado, hoje temos os chamados direitos federativos. Empresários e clubes podem comprar parcelas desse direito, uma espécie de capital fantasmagórico cuja representação é o jogador. Dessa maneira, para contratar alguém, determinado clube ou empresa compra parcelas de um jogador, como compra ações na bolsa de valores. É a total alienação do trabalhador frente ao mercado.
Contudo, mesmo com todas as contradições, é muito bonito ver os jogadores combatendo a estrutura do futebol brasileiro. O Bom Senso já anunciou que os protestos irão continuar e se não forem atendidas as reivindicações uma greve não está descartada. Aguardemos!
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