Foto: Manu Dias |
O sentimento que os brasileiros nutrem pelo futebol é mesmo algo inexplicável. Se é verdade que não é apenas no Brasil que esse esporte desperta paixões, também é fato que por aqui ele ganhou proporções tão elevadas ao ponto de fazer parte de nossa identidade enquanto povo.
Em qual outro canto do mundo podemos facilmente encontrar um grupo de crianças que, com uma bola de meia improvisada, batem um baba em qualquer pedaço de terra que encontram, mesmo que minúsculo? Onde o time de coração deixa de ser tratado apenas como uma empresa e passa a fazer parte da vida do torcedor, influenciando até no seu humor cotidiano? E onde até mesmo obras de concreto, como os estádios, são capazes de despertar uma magia incompreensível?
Foi acompanhado por esse encanto que, no dia 7 de abril, um domingo, tive a oportunidade de assistir in loco a reinauguração do estádio da Fonte Nova, em Salvador. E a cada passo que dava em direção à agora moderníssima Arena Fonte Nova, me lembrava de bons momentos vividos naquele lugar e das lágrimas de tristeza e de alegria que ficaram por ali.
Na verdade, nem ia assistir ao BA x VI de reestreia, já que não havia conseguido adquirir um disputadíssimo ingresso. Mas quando já estava conformado em acompanhar o jogo pela televisão, eis que uma alma caridosa me liga poucas horas antes da partida pra dizer que tinha um convite sobrando e que passaria em minha casa para entregá-lo. E mais: o convite era para a área VIP da Arena (disso só fiquei sabendo quando cheguei no estádio). Se o nome disso não é amizade...
Lá dentro, me impressionei com as mudanças realizadas. Como eu ainda tenho muito vivas em minha memória as lembranças de cada pedaço da antiga Fonte Nova, pude comparar e atestar a imensa diferença entre o passado e o presente.
E enquanto ia fazendo essas meditações à espera do show começar, também fui colecionando os micos típicos de quem não tem o costume de frequentar áreas VIP. Rodei o camarote inteirinho atrás de um caixa para comprar uma ficha de cerveja até saber que era tudo de graça: cerveja, drinques, energético, água, e tudo mais. Mas a minha tabaroice ainda não havia encontrado o seu limite: por lá também tinham várias mesas com diversos tipos de comida: salgados, cachorro-quente, pizza e várias massas, pipoca, entre outros. Como não sabia por onde começar, peguei uma torrada e passei uma pasta que pensei ser algum tipo de geleia mais escura. E foi assim comi caviar pela primeira vez em minha vida.
Era um luxo só: ar-condicionado, poltronas acolchoadas, comida e bebida de graça, garçons para lhe servir e até funcionários para abrir as portas do camarote para você. E foi em meio à todo esse conforto que cheguei à ideia exposta no título desse texto.
Quem já leu um pouco de Marx deve saber que mais-valia, a grosso modo, é aquela parte do trabalho exercido pelo explorado que fica nas mãos do patrão, o explorador. Como um funcionário de uma montadora de automóveis que produz alguns carros em um mês mas que só recebe o equivalente a uma ínfima parte (chamada de salário) da riqueza produzida por ele e seus colegas. Uma outra pequena parte cobre os custos de produção e quase todo o lucro fica com os donos da montadora, que em nada contribuíram com o processo produtivo.
E o que isso tem a ver com estádios, futebol, camarote, caviar?
Tudo. Tem tudo a ver. Praticamente todas as centenas de pessoas que compunham o cenário do camarote da Arena Fonte Nova estavam desfrutando de todo esse luxo de graça, sem gastar um centavo. Com algumas raras exceções, eram membros da classe média alta para cima. Ou o que o citado Marx chamava de burguesia.
Como não creio que o Consórcio privado a quem o governo entregou a administração da Arena estava gastando esse dinheirão por caridade, fiquei me perguntando como eles faziam para sustentar todo aquele luxo e ainda extrair algum lucro do empreendimento.
A resposta é fácil: basta cobrar R$ 90,00 do pobre trabalhador apaixonado pelo seu clube que as contas batem e ainda sobra um bom dinheiro. Esse foi o valor de ingresso mais barato cobrado para a histórica partida. A partir de agora, o preço deve ficar na casa dos R$ 70,00 nos BA x VI's e R$ 60,00 nos demais jogos (repito, o mais barato).
Pra ser mais claro, o caviar desfrutado gratuitamente pela "parte de cima" da sociedade é sustentado pelo valor absurdo cobrado da "parte de baixo". Ou seja, mais uma vez a classe trabalhadora se lascou para sustentar os luxos desnecessários da elite medíocre que possuímos.
A realização da Copa do Mundo de futebol no Brasil é uma grande vitória do nosso povo e reflete o bom momento vivido pelo país. Mas é preciso ter capacidade para disputar o legado que será deixado por esse evento. A necessária modernização dos nossos estádios não pode ter como preço a exclusão da parcela mais pobre da população no acesso à esses equipamentos e, consequentemente, o alijamento do direito ao esporte e lazer.
Precisamos utilizar a criatividade que temos de sobra para encontrar saídas inovadoras, sem copiar o modelo de Arenas europeias que desconsideram o fato de que o padrão de vida por essas terras ainda é bem latino, incompatível, portanto, com a política de ingressos caros desse tipo de empreendimento.
É possível romper com o discurso conformista e tornar o futebol brasileiro ainda mais democrático e popular, onde a paixão e o encanto falem mais alto do que a lógica do mercado.
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