Richard Sennet, no livro O declínio do homem público, afirma que a política é teatro, e a afirmação é feita positivamente. É um elogio à política como elemento civilizatório, como uma atividade que reclama adaptação à correlação de forças, que implica subestimação dos ódios pessoais, fortalecimento do espírito público. É bom lembrar isso em tempos em que a política anda tão combatida, como se ela não fosse tão essencial aos homens e mulheres de todo o mundo, como de fato é. Agora, teatro, aqui, não pode significar enganar a multidão, ludibriar o povo, prometer o que não se pode cumprir. Aí, vira politicalha, não é mais política.
Parto disso para discutir os primeiros passos do prefeito eleito e empossado de Salvador, ACM Neto. E, de pronto, alerto que sei de uma espécie de prudente ritual, segundo o qual há que se esperar um bom tempo até que se possa criticar o novo administrador e suas políticas, no essencial um ritual correto e, por isso, me aterei apenas àquilo que já foi feito, e se feito, se exposto ao sol, sujeito à crítica, se crítica couber. Bom, quem sabe, até para o novo prefeito repensar o que diz, quando for o caso.
Sou jornalista, mas se alguém disser, maliciosamente, que sempre fui adversário do grupo político do prefeito, estará dizendo a verdade. Isso não invalida a crítica, porque não penso existir ser humano imparcial na face da terra. O esforço, e eu o faço, é para não distorcer fatos, sempre enquadrá-los corretamente, contextualizá-los, aproximar-se o mais que se possa da verdade. Não tenho qualquer animosidade pessoal com o prefeito eleito. Somos apenas adversários políticos, e a apresentação de diferenças é parte da vida democrática, dá vitalidade à democracia. Agora, ao primeiro ponto: o secretariado que o prefeito apresentou à cidade.
Durante a campanha, o então candidato ACM Neto disse que comporia um secretariado técnico, fundado na meritocracia, que não haveria ingerências políticas. Tratava-se, evidentemente, de uma promessa impossível de ser cumprida, e, Neto, jovem, mas já experiente político, sabia, de sobra, que aquilo ele não iria cumprir, era algo impossível de ser cumprido. Era uma promessa falsa, conscientemente falsa. Isso não fica bem para quem está iniciando um mandato executivo pela primeira vez. Marca negativamente. Tivesse dito que comporia um secretariado político e ninguém estranharia. Afinal, a política é que baliza a administração.
Ninguém se assustaria se ele nomeasse tantos políticos, inclusive presidentes de partidos aliados logo de cara, como o fez, contrariando o que dissera: José Carlos Aleluia, Ivanilson Gomes, João Carlos Bacelar e Maurício Trindade, respectivamente para as secretarias de Urbanismo e Transporte, Cidade Sustentável, Educação e Promoção Social e Combate à Pobreza.
Aleluia era presidente do DEM na Bahia e vice-presidente do DEM nacional. Gomes, presidente do PV baiano. Bacelar, presidente do PTN baiano e Trindade, deputado federal do PR. Lembrem-se, ainda, as nomeações de Pedro Godinho, do PMDB, ex-presidente da Câmara de Salvador e do candidato derrotado a prefeito de Xique-Xique, do PMDB. Ao ex-prefeito de Salvador, Antonio Imbassahy, deputado federal do PSDB, coube a presidência da Câmara, com o jovem vereador Paulo Câmara, e aqui saio do terreno estrito do secretariado, mas não da repartição do poder político.
Que a política seja sempre teatro, tudo bem. Que o cenário seja montado para enganar o povo, não me parece correto. Foi o que ocorreu, neste caso. O secretariado é essencialmente político, como da lógica, como da boa política, e nisso há nenhum mal, ao contrário. O que não é aconselhável é que se utilizem artifícios para se pretender um outsider da política, como Collor fez na campanha de 1989, que se faça um discurso para desqualificar os políticos, e depois, como os mais avisados sabiam à saciedade, faça exatamente o contrário, e siga rigorosamente a cartilha da política, trazendo para o seu governo os políticos que o apoiaram.
Perceba-se que aqui não se desenvolve a crítica aos que foram nomeados, até porque há de se esperar as políticas que executarão, emanadas das diretrizes do prefeito, para qualquer avaliação. A discussão quer apenas revelar a evidente contradição entre o que se prometeu na campanha e o que se fez na prática. Não é algo secundário. Enganar na política não é boa política, e mais cedo ou mais tarde, a verdade se impõe, como já se impôs. A teatralização da política não é necessariamente um mal. O mal, mesmo, é vender gato por lebre, como neste caso.
O jovem prefeito tem sido, ainda, refém de seus conflitos. Neto já disse, e penso que com certa clarividência, que a vitória dele não representava, como me parece óbvio, a volta ao carlismo, como se chamava a corrente liderada por seu avô, ACM, que comandou a Bahia com mão de ferro por algumas décadas. A marca dele era o autoritarismo, e ele não escondia isso. As eleições na Bahia eu faço com um chicote numa mão e uma sacola de dinheiro na outra, costumava alardear, sem qualquer pretensão de esconder. Assim, a Neto, em alguns momentos, parece ser confortável descartar essa herança, mas o faz apenas de passagem, para em seguida buscar referências no avô, que fora prefeito biônico de Salvador, nomeado pela ditadura militar.
No momento da posse, gritou a palavra de ordem: ACM voltou!, querendo, com isso, naturalmente, buscar algo daquela herança. Sabe que o que se pode, ainda, chamar de carlismo se estilhaçou na Bahia a partir, sobretudo, das duas vitórias do PT e dos partidos aliados, sob a liderança do governador Jaques Wagner. O DEM conseguiu novamente representar alguma força na Bahia, e no Brasil, a partir da vitória em Salvador no segundo turno e em Feira de Santana, no primeiro turno, isso não se pode negar. Mas, se pensar que, em 417 municípios, venceu em apenas nove, isso mesmo, nove, é uma tragédia anunciada. Por isso, é alta a aposta de que ele dificilmente fica no DEM. Isso só o futuro dirá. Por enquanto, ainda vai atrás de quadros antigos do que se convencionou chamar de carlismo, temperando com outros do PSDB e do PMDB.
Ao chamar a ex-secretária de segurança de governos carlistas, Kátia Alves, para a empresa que cuida do lixo em Salvador – Limpurb – foi fundo na busca de heranças. Kátia foi secretária nos tempos em que o avô de Neto grampeou meia Bahia, coisa que lhe rendeu um escândalo de bom tamanho, início de sua decadência política acelerada.
Curiosamente, e eu me lembro bem disso, pois era vereador em Salvador, no início dos anos 2000, curiosamente ela costumava dizer que “se lixo a gente recicla, quanto mais gente”. Agora, cuidará de reciclar lixo, como queria a sua metáfora, e com isso não se está avaliando se o fará bem ou mal. Apenas ligando passado e presente, coisas indispensáveis à política e ao jornalismo.
O prefeito, para ser justo, nessa primeira fase, soube fazer uma política de boa vizinhança com o governador Wagner, e este acolheu bem seus acenos, inclusive levando-o à presidenta Dilma para que apresentasse suas reivindicações. Provavelmente, é difícil que não seja assim, estarão em palanques diferentes em 2014, mas é bom para o povo de Salvador que ambos os lados pensem em enfrentar a tragédia da cidade, vitimada pelas políticas loucamente privatizantes, destrutivas do prefeito João Henrique, firme aliado de Neto durante as eleições, herança da qual ele também tenta se livrar. João Henrique, nos últimos dias, fez questão de lembrar esse decisivo apoio.
Na Câmara Municipal, a oposição, encarnada, sobretudo, pelo PT, PC do B e PSB, não cultiva ilusões. O programa de Neto, por mais esforços discursivos que faça, seguirá a proposta do DEM e do PSDB. Declarações seguidas indicam que ele quer governar a cidade como fazem as empresas. O que não é um bom sinal. Empresa é empresa. Administração pública é outra coisa, muito, muito diferente. A vida segue. Para confirmar ou desmentir. Sei, isso sei, Salvador vive uma crise impar entre as grandes cidades.
*Emiliano José é deputado federal pelo PT da Bahia.
*Emiliano José é deputado federal pelo PT da Bahia.
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