terça-feira, 20 de março de 2012

Farc: Paz tem que rimar com soberania e justiça social

As Farc deram mais uma demonstração de que estão dispostas a cumprir a promessa de libertar os últimos prisioneiros de guerra em seu poder, na sexta-feira (16). Em comunicado, o grupo diz estar pronto para iniciar o processo de libertação, mas ressalta que o governo deve permitir a visita de ativistas humanitários aos guerrilheiros detidos pelo Estado. A presidente do Conselho Mundial da Paz, Socorro Gomes, confirma que “as denúncias de abuso nos cárceres do país são terríveis”.

Por Vanessa Silva

Desde que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) anunciaram o fim da prática de sequestros e a libertação dos últimos militares em poder do grupo, diversas reportagens têm sido publicadas pela imprensa brasileira, sem, no entanto, esclarecer o que significa esse ato e o que ele sinaliza não só para o futuro da Colômbia, mas de toda a América Latina. Sobre isso, o Vermelho consultou dois intelectuais e uma dirigente de movimento social. O resultado são duas reportagens que tentam mostrar outra visão sobre a guerrilha.

Para entender o que acontece na Colômbia hoje é preciso “levar em consideração sua origem e capacidade de resistência histórica”, orienta o economista, cientista político e coordenador da cátedra e rede ONU-Unesco de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável – Reggen, Theotonio dos Santos. Ele observa que “as Farc são o produto de uma luta revolucionária dentro da Colômbia. [A guerrilha] não surgiu da mesma maneira que os outros movimentos armados [da América Latina], que foi gente urbana que foi para o campo. As Farc são um movimento camponês surgido das lutas camponesas”.

Origens


Com o assassinato do candidato liberal à presidência, Jorge Eliecer Gaitán, — tido como defensor do povo — em 1948, a mando do Partido Conservador, desencadeou-se uma onda de revoltas que, devido à repressão do Exército, culminou no massacre conhecido como “Bogotaço”. A onda de violência se espalhou pelo país deflagrando uma guerra civil de mais de 10 anos — período conhecido na história colombiana como “La Violencia”, em que mais de 200 mil pessoas foram mortas. 

“A Colômbia é como todos os nossos países. Quem governa são as oligarquias. Quando um intelectual progressista tem condições de assumir o poder o que acontece? Dá-se o “Bogotaço”. Reprime-se, mata-se todo mundo”, aponta o jornalista e diretor do “Espaço Cultural Diálogos do Sul”, Paulo Cannabrava Filho. 

Com o passar dos anos, mais pessoas foram arregimentadas para as fileiras da guerrilha leninista-marxista. Dos 350 combatentes de 1966, o contingente chegou a 20 mil integrantes em todo o território nacional em 2006, com 70 frentes e 15 colunas móveis e independentes em todo o país, segundo dados da Enciclopédia Latinoamericana. 

Narcotráfico

A questão do financiamento é um ponto sensível para os insurgentes. Santos esclarece que “a ideia de que as Farc se ligaram ao tráfico de drogas é fruto de propaganda. Não tem nenhum fundamento, exceto que nas regiões controladas por ela é cobrado um certo tipo de imposto que recai, muitas vezes, nos próprios traficantes e isso é importante para a sobrevivência dela”. 

Nesse mesmo sentido, em entrevista concedida ao jornal espanhol Público, em 2011, o ex-comandante Alfonso Cano, morto em combate no mesmo ano, esclareceu que “o narcotráfico não é um problema das Farc. É um fenômeno nacional, latino-americano e mundial” e reafirma que “em nenhuma unidade fariana (...) pode-se semear, processar, comerciar, vender ou consumir alucinógenos ou substâncias psicotrópicas. Todo o resto que for dito é propaganda”, assegura. 

Sobre a fonte de renda da organização, ele elucida: “temos três fontes de financiamento: contribuições de amigos e simpatizantes, (...) impostos que cobramos dos ricos, através da lei 002, e rendas geradas de investimentos que mantemos”.

Com a desculpa de combater o narcotráfico, os Estados Unidos acompanham a situação colombiana de perto. Para Cannabrava, “as baixas nas Farc não foram graças aos colombianos”, mas se devem ao fato de que “quem comanda a guerra contra as Farc são os Estados Unidos com o Comando Sul”, juntamente com os serviços de inteligência da Europa, e de Israel. “Está todo mundo metido nesta guerra”, afirma. “Eles é que conseguiram essas baixas, não o exército colombiano. A correlação de forças mudou a partir do momento em que os EUA aceitaram essa guerra como deles”.

Sequestros

No último dia 26 de fevereiro, as Farc anunciaram a libertação unilateral dos dez últimos prisioneiros de guerra em seu poder e informaram que, a partir de agora, os sequestros estão proscritos. O assunto gerou diversas reportagens na imprensa tradicional. A Folha de São Paulo, por exemplo, publicou editorial sustentando que a guerrilha está “encurralada”. O texto fala em “desmonte” e garante que “mais cedo ou mais tarde, chegará ao fim essa organização anacrônica”.

Sobre a questão, Santos é taxativo: “eu realmente não estou convencido de que eles estão tão enfraquecidos assim”. E discorda da opinião de que o anúncio marca uma “derrota”. Para ele, o sequestro “não era um instrumento favorável. (...) Assim, há uma renúncia [à prática] do ponto de vista das vantagens que ela tem. Porque elas são muito inferiores [se comparadas] ao desgaste que representa aparecer jogando com vidas humanas dessa maneira”. 

Apesar de já ter controlado boa parte do território colombiano, hoje há uma queda da influência das Farc, como pontua Cannabrava. Ele observa que o processo de urbanização e desenvolvimento que vem se dando na América Latina contribuiu para a perda de força e aumento do isolamento da guerrilha e considera que “o caminho para [os insurgentes] tem que ser o político. (...) As Farc têm expressão para entrar na política e fazer como fizeram os Tupamaros [movimento guerrilheiro do Uruguai], que hoje chegaram à presidência da República” com Pepe Mujica. 

Fim da guerrilha?

Theotonio corrobora: “é claro que não tem um momento muito positivo [para as Farc] porque o clima político da região não é favorável neste momento a manter uma luta armada. Há uma situação de avanços políticos importantes”. Além disso, “é evidente que governos que poderiam apoiar uma guerrilha não estão de acordo. Nesse momento querem que haja uma saída política e creio que a própria Farc tenha essa posição”. 

Uma questão desmistificada por Santos é o argumento de que as Farc procuram uma saída negociada neste momento por estar fragilizada: “as Farc têm buscado apoio político há muitos anos. Alguns acordos que foram feitos foram terríveis porque mataram os guerrilheiros quando eles saíram para a legalidade”, lembra. 

Um desses acordos, e talvez o mais emblemático, foi proposto pelo governo de Belisario Betancur (1982-1986), em 1984, para tentar que os grupos guerrilheiros integrassem a vida política do país. Assim, no mesmo ano, as Farc, em conjunto com o Partido Comunista, criaram a União Patriótica, com o objetivo de disputar as eleições do país. No pleito de 1986, a UP conseguiu 14 representantes no Congresso, 18 deputados em 11 assembleias departamentais e 335 conselheiros municipais de 87 cidades e aldeias. 

Novamente o que se vê é uma dura repressão do Exército, que não aceitou o cessar-fogo e a tentativa de pacificação proposta. Entre 1986 e 1998, cerca de quatro mil integrantes da UP foram mortos, tanto pelas forças colombianas, como pelos paramilitares. 

Tendo como base este episódio, Theotonio ressalta que os integrantes das Farc “têm que ter proteção. Têm que, inclusive, ter um grau de influência sobre as Forças Armadas Colombianas para ela não ficar exclusivamente na mão de grupos repressivos que são muito violentos”.

Paramilitares

Outra força importante neste tabuleiro são os paramilitares. Socorro Gomes, que integra a comissão internacional que vai apurar as denúncias feitas sobre as prisões da Colômbia, destaca que muitas pessoas também foram sequestradas pelas forças paramilitares e reforça que isso precisa ser apurado. 

Além disso, há perseguição e ameaças aos ativistas no país, como denuncia: “enquanto estávamos reunidos [no fórum “Colômbia entre grades”, realizado nos dia 26 e 27 de fevereiro em Bogotá], chegou uma carta dos paramilitares ameaçando vários dos membros das comissões de direitos humanos colombianos. Eles deram um mês para [os ativistas] deixarem o país”. 

Ela evidencia ainda que “não dá para desarmar as Farc e não desarmar os paramilitares, sem desmontar quem financia e quem coordena”. E complementa: “A ONU é clara e fala sobre o direito dos povos de lutar contra as ditaduras e defender seu país. (...) Para nós, a paz é fundamental, mas tem que rimar com soberania e justiça social e cada povo soberanamente vai construir a melhor forma de viver”.



Fonte: Portal Vermelho

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