Cuida-se de pleito formulado em favor de João Getúlio, cuja origem incerta encontra-se narrada da inicial pela pena ilustre do padre Geraldo Francisco Leocádio, inicial ratificada, posteriormente, pelo causídico Vicente César Santana.
Ao que consta, segundo informações de José Alves Ladeira e sua mulher, Conceição Ladeira, ambos acima dos setenta anos de idade, seria o requerente filho de Antônio Getúlio e de Maria das Neves, ambos falecidos na zona rural de Ervália. Os pais residiam na propriedade de Godofredo Alves Ladeira que, piedoso, acolheu o órfão, então com oito anos de idade. O menino sempre ficou aos cuidados da família Ladeira, tendo ido morar com D. Chiquinha, irmã de Godofredo; depois, foi acolhido por José Alves Ladeira que, casado com Conceição Ladeira, o levou para Palmital, zona rural de Coimbra.
O rebento, todavia, revelava amentalidade desde os verdes anos; ora agressivo, ora passivo. Nas crises de ausência, desaparecia da casa de seus benfeitores, para retornar dias ou meses depois. João de Lima, produtor rural de Ervália, conta que também acolheu João Getúlio, narrando ter ele, em certa ocasião, sido acometido de mal súbito; dado como morto, foi entregue a velório e, no meio das exéquias, despertou e assustou a todos os presentes.
Foi acolhido, finalmente, pela paróquia de Fátima, em Viçosa, onde faz uso das instalações e se alimenta, eventualmente. Nas ruas, dado seu estado andrajoso, recebe algumas moedas e corre a depositá-las aos pés da santa, no adro da igreja.
A pretensão, portanto, é no sentido de se conceder o registro civil, garantindo-se-lhe assistência judiciária.
Ratificada a inicial, foram ouvidas três testemunhas e colhido o depoimento do padre Geraldo Francisco Leocádio.
Parecer ministerial pela improcedência.
É o relatório.
Decido.
A inópia do processo é flagrante e o fato foi lembrado pelo cioso promotor público. Nada se sabe sobre esse tal de João Getúlio. Não se sabe, também, como e quem o teria partejado.
O processo é pobre como João, mas o último é pior, porque nem mesmo direito ao processo teria, porque João, em verdade, não existe.
João não existe oficialmente, mas é. Lá está ele ao derredor do adro da Igreja de Fátima; lá vai ele, andar trôpego, em andrajos, na esquina da rua a despertar a caridade dos passantes que lhe deitam moedas; recebendo-as, voa para depositá-las aos pés da imagem da Virgem, onde ali, realidade ou
onirismo, recebe o afago da mãe, abebera-se da luz da esperança e banqueteia-se no seu conforto.
João não existe para o Estado, e o Estado faz questão de não querê-lo.
João é nada e não será nada, mesmo venha a viver milhões de noites. Continuará ignorado porque seu fado, essa a sina imposta pelos Homens.
João é ninguém.
Sua inexistência consolida-se porque, em verdade, ele não está nesse mundo. Seu espectro, conquanto visto aqui e acolá, apenas encorpa sua natureza irreal. Se ele vive, não está aqui, porque no arremedo de cérebro não parece haver fixação telúrica. Se ele existe, está nos próprios sonhos e nos nossos, conquanto a maioria o enxergue, mas teime em não vê-lo. João é uma peça de ficção, mas ele não se dá conta, não percebe.
Ele está muito acima,num alcantil inacessível, passageiro em oceano imaginário, desde os verdes
anos, da Stultifera Navis, aquela mesma embarcação que singrou os rios europeus no século XV, túrgida de loucos. Mas João, apesar de membro da Nau dos Insanos, ao contrário do imaginado, ufana-se dela. Nele há paz.
O Estado, de qualquer modo, feliz ou desinfeliz o João, prefere continuar a ignorá-lo.
O Estado sabe como fazer isso. O Estado cria leis e elas também se prestam ao olvido de coisas e pessoas sem importância. Por isso o Estado exige papéis, documentos. Esses têm maior eloqüência e são mais verazes que o testemunho somático.
João teima em parecer existir, mas sua carne, insistentemente perturbadora, não está documentada. Ele parece gente, mas não é. Lá vai a matéria, matéria animada, mas ela não existe, não está registrada, não é oficial.
Aquele velho adágio, para o Estado (“Penso, logo existo”), sempre teve feitio diverso. A verdade é: “Sou um documento, logo existo”.
João não se explica. De onde veio, quem é sua mãe, quem é seu pai?
Qual sua história, qual é a sua João? João não pode responder e João não ajuda, porque não vive, simplesmente passa, como passará um dia, em definitivo, tranqüilizando o Estado e a todos que se perturbam com sua (não) presença.
Mas se passar, que passe em definitivo, bem enterrado, para não se fazer redivivo no velório, como já ocorreu uma vez, quando assustou todo mundo.
Onde já se viu? Não existe, mas morre, e morto arremeda, em visos, a Lázaro?
Voltando ao processo, o promotor público está certo. Apresentou a lei e sua interpretação dada pelos tribunais. Cumpriu seu papel, com exação, com talento, como sempre faz. Declarar existente o João sem prova documental é temerário, porque inexiste prova. A decisão será facilmente cassada, porque o Estado só entende a linguagem dos documentos.
Mas o Estado tem opositores. Há sempre alguém “pondo gosto ruim”, se rebelando, difundindo cizânias.
A despeito de João não existir, populares, como José Raimundo da Silva (Avenida Tal, 242, Bairro Tal, Viçosa), e sua mulher, Maria das Neves, bem assim José Alves Ladeira (Rua Qual, 375), e sua esposa, Conceição Ladeira, todos com existência oficial, teimam em afirmar ser o indigitado, o João, presente, existente.
Seria filho de Maria das Neves e de Antônio Getúlio, nascido,“esse não existir”, em Ervália.
José Raimundo da Silva, João Henrique de Freitas e o padre Geraldo Francisco Leocádio, pároco de Fátima (fls.13/15), sustentam ser a idade, estimada, entre 65 e 70 anos, mas tudo é possível: pode ter menos ou mais.
Não há de carecer a informação sobre dia e ano do natal quimérico. Se até agora não existiu, há de bastar-lhe apenas uma idade, mesmo incerta, “para finalmente se identificar”. Fica-se com aquela menor, de 65 anos, para consolo estatal, porque preocupa-se apenas com o furo nas burras do instituto de previdência, embora adrede esqueça-se da própria omissão, do abandono dos seus filhos, oficiais ou não.
Não há de calar no intimorato juízo do promotor público a preocupação com a ascendência dada a João. Se ela existiu, ou se existe, não há de ter deixado capaz de causar espanto, a não ser a pobreza, que deveria escandalizar mais que a opulência.
Depois, ainda que a sorte ou infortúnio ditem uma coincidência tamanha, a da existência de legados, meios jurídicos o Estado terá, bem assim seus filhos reconhecidos, para o afastamento de João, aí já existindo, documentado, mas sempre, como hoje, importuno.
Posto isto, julgo procedente o pedido para determinar ao senhor oficial de registro de pessoas naturais de Viçosa, representante do Estado, seja oficialmente reconhecida a existência do peregrino JOÃO GETÚLIO, vulgo “JOÃO NINGUÉM”, filho de Antônio Getúlio e de Maria das Neves, nascido do Município de Ervália, há sessenta e cinco anos.
Custas pelo Estado.
Incontinenti, ao mandado.
Publique-se, Registre-se e Intime-se
Viçosa, 27 de setembro de 2004
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