segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Camila Vallejo*: Contribuição sobre o movimento e sua continuidade

Contribuição sobre o movimento e sua continuidadeEste movimento, fruto de longos processos de acumulação, amadurecimento político e consolidação orgânica no seio do mundo educacional, não apenas conseguiu elaborar um diagnóstico que demonstra a triste realidade do sistema de educação chileno, como também constatou em sua origem e evolução uma causalidade funcional na reprodução e aprofundamento das desigualdades no nosso país.


Dado o papel que a educação desempenha, ao constituir-se dentro da super-estrutura social como ferramenta de transformação ou reprodução material e cultural das ideias de um modelo econômico, social e político determinado, hoje não restam dúvidas de que é um sistema conscientemente perverso.

Vimos como a educação no Chile contribui muitíssimo para a exclusão, a segregação e para a segmentação social. A competição como elemento mobilizador da qualidade educativa, ao fazer com que os atores compitam entre si, decide por eliminar toda possibilidade de que a rede de servidores possa se desenvolver como um verdadeiro sistema, e, pelo contrário, contribuiu para a sua fragmentação. A super valorização exacerbada dos métodos de avaliação padronizados impostos sobre os processos de formação, acabam evidenciando as enormes desigualdades de origem e permitindo a discriminação com base nisso. A compartimentação dos conteúdos em conhecimentos úteis apenas para o “empreendimento” não permite formar sujeitos integrais e com capacidade crítica. O viés deliberado na formação dos educandos os pré-destina a ser mão de obra barata do aparelho produtivo ou de profissionais para o mercado. A concepção de bem e de investimento individual – no lugar de pública – no momento de financiar a educação permite que o custo de educar recaia sobre cada família e que seja, no fim das contas, a sua capacidade de pagamento o que determina o exercício de seu direito à educação. 

Este modelo se encarrega da geração de um imaginário sociocultural que promove princípios e valores próprios do neoliberalismo. Princípios anti-éticos como o individualismo, o consumismo, a apatia e o foco exagerado nos resultados e no sucesso, o que junto a aspectos econômicos e jurídicos geram as condições para legitimar uma dominação exercida por setores minoritários que se beneficiam do sistema, às custas das grandes massas de trabalhadores, moradores de comunidades diversas e estudantes que se vêm prejudicados e arrastados numa correnteza sem fim, onde são sempre eles que assumem os custos através do endividamento, da instabilidade de emprego, da sub-valorização profissional e do desemprego. Enquanto abundam os ingressos de empresas que, sem produzir ou inovar, lucram de maneira muito conveniente com aquilo que em qualquer outro país seria considerado um direito.

Diante de tão triste realidade, é que a demanda do movimento estudantil, que rapidamente ecoa no âmango do mundo social, torna-se uma questão eminentemente política. Coloca em cheque o papel que deve desempenhar a educação no seio da sociedade e consequentemente, sua relação com o mercado e com o Estado. Neste sentido, a recuperação da educação como um Direito Social e um Investimento Social, não é apenas por gerar mobilidade social, mas, sim, para que a sociedade conte com uma instituição dedicada a criticar objetivamente sua própria estrutura, desempenho e trajetória política e social (Meller, P. “El problema no es el lucro, es el mercado”) a partir da democratização do conhecimento e da formação integral de todo o povo. Este último merece verdadeira atenção, considerando que frente à complexidade da nossa sociedade atual (injustiça social, aumento progressivo das desigualdades, diminuição generalizada da qualidade de vida, violência estrutural, deterioração ambiental, precarização laboral etc.) não podemos depender de profissionais e técnicos com uma visão fragmentada e restrita apenas aos conhecimentos úteis para o empreendimento individual ou coletivo, mas, sim, de sujeitos, gerações completas que tenham uma visão integral e ampla da realidade nacional e mundial. Só assim poderemos enfrentar a complexidade dos problemas sociais e ambientais que nos afetam. Definitivamente, trata-se de gerar dispositivos contra-hegemônicos ao modelo de mercado, porque é este que aliena a nossa sociedade e a condena à manutenção das desigualdades e injustiças atuais. 

Neste sentido, entendemos que o Estado como instituição que vela pelo bem, a democracia, a liberdade e a justiça social, é que deve ofertar uma educação pública, que cubra todas as regiões e níveis de ensino, que eduque todos os segmentos socioeconômicos sem discriminação, que seja pluralista e garanta liberdades mínimas para a formação de seres humanos preparados para o exercício democrático, tolerantes, críticos e socialmente responsáveis. Um sistema que não tenha como objetivo a acumulação do capital financeiro às custas dos sonhos de milhares de famílias, mas sim, que tenha como finalidade fazer com que o país conte progressivamente com uma maioria de pessoas que, de maneira crítica, se dediquem ao trabalho científico, técnico, intelectual e artístico exigido para seu desenvolvimento social, econômico e cultural em igualdade de condições. 

O conhecimento é nossa principal ferramenta para uma possível emancipação social. Se não garantimos o acesso ao conhecimento integral e complexo a todos os cidadãos, dificilmente o país alcançará um desenvolvimento justo, e pelo contrário, continuará mantendo a desigualdade que torna possível a apropriação do conhecimento por alguns poucos que o utilizam para subjugar as maiorias ignorantes.

Quando entendemos que a demanda é por muito mais do que educação gratuíta, de qualidade e para todos, erguendo-se como uma posição contra-hegemônica ao modelo mercantil de educação, nos damos conta de que aqueles que o sustentam dificilmente estarão dispostos a ceder e arriscar assim os seus privilégios. Seu modelo está amparado em posições profundamente ideológicas e num ordenamento conveniente das relações de poder herdadas da ditadura militar. Não é por nada que, depois de longos meses de mobilização, o governo, junto com a cumplicidade dos mesmos que durante trinta anos mantiveram o modelo, continua repetindo, como um disco riscado, uma proposta de reforma que parece mudar tudo para na verdade não mudar nada. Um discurso (facilitado pelos meios de comunicação) que muito habilmente recolhe nossas demandas e as distorce para transformá-las em argumentos que reafirmam a perpetuação e aprofundamento do mercado na educação, com absoluta hegemonia. 

Contando com o apoio de uma maioria de chilenos, tendo respaldo de organismos e tratados internacionais, além do trágico diagnóstico de um sistema onde é escandalosa a desigualdade e o abandono do Estado, como é possível que nos encontremos hoje sem nenhum avanço substantivo na direção de uma mudança estrutural? A verdade é que o problema começa a ser visualizado como algo que está além do meramente educacional e começa a ficar evidente um conjunto de sistemas que operam coordenadamente para a manutenção do modelo e suas relações de poder, onde a educação é apenas uma de suas muitas peças. 

Gilberto Valdés, filósofo cubano, em seu livro Posneoliberalismo y movimientos antisistémicos, reconhece que a exploração econômica; o esvaziamento da democracia representativa; a discriminação sociocultural; a alienação mediático-cultural; e a depredação ecológica, entre outras, são parte de um conjunto de práticas que permite a exclusão social, a opressão política no marco da democracia formal, a manutenção das elites no poder, a concentração dos meios como forma de domínio do capital sobre a sociedade para a contra-insurgência de alternativas que coloquem em risco sua hegemonia e a maximização dos lucros das grandes empresas multinacionais e internacionais às custas do ser humano e do meio ambiente. 

Segundo G. Valdés, todas estas práticas dão conta da existência de um Sistema de Dominação Múltiplo que compreende todas aquelas formas históricas e presentes de dominação, no âmbito econômico, político, social, educativo, cultural e simbólico, onde a hegemonia do capital termina sendo uma praxis e um modo de pensamento, de subjetividade que se elabora desde as matrizes ideológicas dos dominadores. Finalmente, que os sistemas de dominação abarcam amplos aspectos da vida cotidiana e que se reproduzem metabolicamente no material e econômico, mas também por meio das relações culturais mais mediadas.

Se revisarmos a realidade chilena, nos damos conta de que a profunda desigualdade que afeta o nosso país, a que se expressa no âmbito educacional, mas também na saúde, no trabalho, na moradia e no sistema democrático, é uma consequência lógica da aplicação desta multiplicidade de formas de dominação, que se consagraram de maneira clara com as amarrações da ditadura como base fundamental para a manutenção do modelo neoliberal. Daí decorre que o crescimento econômico sustentado do país, do qual se vangloriam todos os nossos políticos, acompanhado de um enfoque do gasto social próprio de um Estado Subsidiário, embora tenha reduzido os níveis de pobreza e indigência no país, não conseguiu, ao longo de mais de trinta anos, diminuir os graves problemas de desigualdade e injustiças sociais, mas ao contrário, conseguiu aprofundá-las. 

É que com a imposição de um Estado Neoliberal, o investimento, a produção e a garantia dos direitos sociais dos cidadãos ficaram relegadas aos privados, convertendo tudo num mercado de interesses particulares. Aqui prevalece o desencontro sobre a cooperação; o individualismo sobre a solidariedade; a competição sobre a colaboração; e os bens privados sobre os bens públicos. Um modelo que significou um grande retrocesso nas conquistas democráticas que fizeram do público um valor fundamental para o desenvolvimento em igualdade de condições do nosso povo. O sistema econômico e político foi transformado para garantir a manutenção no poder de um reduzido grupo de famìlias e/ou empresários através da apropriação dos nossos recursos e meios de produção tanto no plano material quanto cultural, inibindo toda possibilidade de desenvolvimento humano e soberano das grandes maiorias. 

Consciente ou inconscientemente, este movimento em seu processo de análise e deliberação, cavou nas origens do status quo, até topar com o coração do modelo, mais além do seu componente educacional. Concluiu que vai ser impossível existir uma solução estrutural para o conflito com um modelo que não se erradica apenas com marchas nas ruas ou mesas de diálogo, porque não há conciliação de classes possível quando os que têm muito e podem escudar-se nos aparatos institucionais, jurídicos, políticos e eleitorais, jamais vão deixar de acreditar que cada peso que têm é merecido e que não devem entregá-lo mesmo que seja proveniente da espoliação vil de lucrar com direitos. 

O fato que traz esperança é que estas ideias fazem eco em todos os que nos vemos afetados por este modelo de “desenvolvimento” neoliberal; cada vez somos em maior número os que nos reconhecemos entre os despojados, ultrajados e prejudicados; cada vez são mais os que abrem os olhos para constatar que existem privilégios apenas para uns poucos; e assim começa a surgir a visão sistêmica do problema e da necessidade de uma maior convergência e ativismo social. Este é o modelo adequado para compartilhar problemáticas e posições e gerar assim as condições para um desenvolvimento estratégido do movimento. É a oportunidade para que propiciemos a aproximação entre diversas demandas e práticas emancipadoras que hoje parecem contraditórias e desarticuladas, e comecemos a erradicar os reducionismos que pré-determinam tarefas, labores ou âmbitos de ação aos diferentes atores sociais, como caminhos separados ou paralelos. Se não geramos uma diversidade articulada, dificilmente poderemos chegar a nos constituir como os futuros coveiros desta reprodução “natural” do modelo neoliberal.

Por isso é papel fundamental deste movimento, entender-se em sua verdadeira força, que já não reside apenas em sua capacidade de pressão, como também se respalda na capacidade de protesto e ação política. A sociedade civil, durante mais de trinta anos atomizada, sem esperanças, sem visão ou perspectiva de futuro, agora se expressa através de suas organizações sociais e sindicais como uma massa crítica com inspiração e motivação suficiente para ser parte da construção de um modelo de sociedade diferente. Estamos diante de uma oportunidade histórica que nós mesmos geramos e da qual devemos nos encarregar; uma oportunidade que nos empurra a agir em unidade apesar das diferenças: que nos obriga a disputar espaços, a nos articular em nível territorial amplo, apostando em constituir-nos em núcleos de geração de um ideário contra-hegemônico, em espaços críticos, de formação e promoção de valores antineoliberais. Que nos obriga definitivamente a tecer uma plataforma política e orgânica, articulada e multisetorial, que seja catalizadora da construção de uma verdadeira alternativa ao modelo neoliberal em nosso país e que seja capaz de disputar o poder para levá-la a cabo.

O movimento tem condições para passar à crítica ao modelo e da ação testemunhal e contestatária, para a construção estratégica e à ação política efetiva, construindo maiorias e dotando de visibilidade as propostas, tensionando o aparato institucional a partir de dentro e de fora, aproveitando cada rachadura ou erro deste cuidadoso andaime de contenção social, para derrubar tudo o que deva ser transformado. Só nesta perspectiva será possível um novo modelo educacional, refundado desde suas bases para responder a outro sistema de desenvolvimento. O Chile não vai transformar pela raiz sua educação se não emplacar esta luta numa grande batalha para erradicar todo resquício autoritário, anti-democrático e mercantil de todo âmbito social, político e econômico. A educação emancipadora, igualitária e libertadora será uma primeira ponte entre o povo e a construção de seu destino.

*Camila Vallejo é líder estudantil no Chile, presidiu até o início de dezembro a Federação dos Estudantes da Universidade do Chile (Fech) e foi uma das líderes dos protestos dos estudantes deste ano, foi considerada a principal figura de 2011 em seu país.

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