Por Lucia Nader, na revista CartaCapital:
Há uma semana a Espanha acordou caminhando à esquerda. Ada Colau foi eleita prefeita de Barcelona e, em Madri, Manuela Carmena foi a segunda colocada e deve ser a prefeita de fato. Ada é ativista antidespejo e uma das protagonistas do movimento 15M e dos protestos de 2011, que fizeram tremer as praças espanholas. Manuela é ex-juíza e defensora dos direitos humanos desde a luta contra a ditadura franquista. As duas representam uma renovação na política espanhola e trazem ao poder o eco das vozes que tomaram as ruas do País há 4 anos. Trazem também um ar fresco para as eleições gerais que acontecerão em novembro e a um mundo descrente na política.
Mas o que há de realmente novo na terra do rei Juan Carlos e de seu filho Felipe VI?
As duas campanhas foram marcadas por inovações e são frutos de coalizões formadas por partidos novos ou alternativos na cena espanhola. Isso, em si, já é uma novidade em um país que, desde 1982, alimenta o bipartidarismo entre o Partido Socialista Obrero Español (PSOE) e o Partido Popular (PP).
A forma como as coalizões se organizaram e construíram seus programas de governo também é uma novidade. O Barcelona en Comú, de Ada Colau, se define como uma plataforma cidadã com “estrutura dinâmica, sustentável e participativa”. Seu coração são as assembleias abertas por bairro e de onde surgem as propostas levadas à plenária. O Ahora Madrid, por sua vez, se define como iniciativa que busca “mais transparência, mais democracia e mais participação”, o que o levou a elaborar colaborativamente seu programa de governo, incluindo consulta aberta pela internet. Os dois se autoproclamam movimentos cidadãos, o que mexe com o imaginário popular e reforça a ligação que tem com movimentos sociais.
O Podemos, partido que surgiu dos protestos de 2011, compõe as duas coalizões. Mais do que isso, aparece muitas vezes como o grande protagonista das vitórias, o que tanto Ada Colau quanto Manuela Carmena fazem questão de negar. Elas relembram repetidamente a pluralidade de força e vozes que as elegeram e tentam driblar o “pablismo” – nome dado pelos críticos do Podemos ao personalismo de Pablo Iglesias, seu secretário-geral, eleito deputado europeu.
Não há dúvida de que as eleições expressaram a canalização de demandas por mudanças e da energia das ruas. Também é fato que se respira o ar da novidade e que houve uma “repolitização da vida” para ao menos parte da sociedade, como descreveu o pesquisador espanhol Amador Fernández Savater. O aumento de eleitores que compareceu às urnas nas últimas eleições refletem essa afirmação.
Mas, passadas as eleições, há quem aposte que o novo sucumbirá ao sistema, sem conseguir transformá-lo.
O desafio começa pela necessidade de dar concretude aos programas de governo com base nos quais foram eleitas. O contundente “Si, se puede!” ouvido à exaustão nos comícios e atos de apoio às candidatas dará lugar à priorização de políticas, orçamento e interlocutores. A luta contra a corrupção, central nos dois programas, deverá ir além da alegação de que “os bancos não têm nossos telefones e não podem nos comprar”, como disse Lorena Ruíz-Huerta, braço direito de Manuela Carmena, durante o ato de encerramento de campanha em Madri.
Outro desafio latente é a necessidade de se estabelecer alianças. A mais evidente é com o socialista PSOE, partido que até pouco tempo tinha o monopólio da esquerda e continua sendo o segundo partido mais votado nacionalmente, atrás do PP. Um de seus líderes, Pedro Sanchez, disse claramente que não pretende radicalizar a agenda do partido. Segundo ele, cabe às novas forças se adaptarem à “agenda de centro-esquerda e voltada à maioria social” que seu partido representa.
A forma como se dará a relação com os movimentos sociais, daqui para frente, é também incerta. Será preciso criatividade e jogo de cintura para absorver as expectativas daqueles que semearam a mudança. Nada garante que as assembleias e processos de construção coletiva que marcaram as campanhas conseguirão subir os degraus dos palácios oficiais.
Além disso, como em qualquer País, a sociedade civil organizada é diversa e a escolha dos interlocutores principais terá de acontecer e poderá frustrar atuais apoiadores. A influência que o Podemos exercerá nas novas gestões poderá, ainda, afastar alguns movimentos sociais, pois o partido está longe de ser unanimidade entre eles.
Por fim, a crise de representação e a confiança nas instituições políticas não desaparecerá da noite para o dia. A começar pela campanha de Manuela Carmena, que alegou não representar a ninguém, mas sim ser portadora de apenas "um pacto, um compromisso, dado que até agora a representação só nos trouxe mentiras e descrença – e, por isso, vamos governar a nós mesmos”. O sistema parlamentar no qual ela se inserirá não é, ao menos por enquanto, adaptado a esse ideal e depende de mecanismos de representação.
O que está então em jogo é a capacidade de novos atores lidarem com velhos desafios da política e não se transformarem em partidos tradicionais – movidos pela necessidade de se perpetuarem no poder e cada vez mais distantes dos cidadãos e daqueles que os elegeram.
Aos olhos atrevidos de uma brasileira, uma pista está em não permitir que os movimentos sociais se esvaziem e tornem-se menos reivindicadores, agora que seus pares estão no poder. Dessa distinção de papéis – na qual aos movimentos cabe uma vigilância crítica – depende a saúde da democracia. E não só na Espanha.
As eleições gerais de novembro, quando será escolhido o primeiro-ministro, serão um bom termômetro do fôlego das candidaturas cidadãs. Até lá seguem as apostas se o novo mudará o sistema ou se será mudado por ele.
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