quarta-feira, 13 de maio de 2015

Soldados israelenses denunciam abusos durante operação militar em Gaza

Por Ana Garralda, do El Diário, publicado no Opera Mundi

Entrar em uma suposta "zona de guerra" da qual, segundo os comandos militares, a população civil já havia sido evacuada. Disparar. E depois ver idosos, jovens e pessoas com deficiência no território. Ou atacar com tanques qualquer alvo, aleatoriamente, como vingança pela morte de um companheiro. Essas são algumas das denúncias reunidas em um informe da organização israelense Breaking the Silence [Rompendo o Silêncio, em português], por meio da qual 70 oficiais e soldados de Israel reportam os abusos cometidos por seu Exército na última grande ofensiva militar sobre Gaza, em meados do ano passado.

A operação Margem Protetora, realizada pelo Exército israelense na Faixa de Gaza durante os meses de julho e agosto de 2014, acabou sendo mais devastadora do que as duas operações anteriores combinadas. Segundo estatísticas compiladas pela delegação do Escritório de Coordenação de Ajuda Humanitária (OCHA) da ONU em Jerusalém, o número de mortos do lado palestino superou 2.100, dos quais cerca de 500 eram menores de idade. Dos cerca de 11 mil feridos, mais de 3.000 são crianças e adolescentes.

"Ao longo dos últimos dez anos recolhemos centenas de testemunhos, mas desta vez houve algo diferente. Nas últimas duas guerras (operações Chumbo Fundido, entre 2008 e 2009, e Pilar Defensivo, em 2012) éramos nós quem buscávamos os depoimentos. Dessa vez, foram os soldados que nos procuraram", conta Avner Gvaryahu, diretor da organização Breaking the Silence.

A organização apresentou nessa semana um informe que reúne quase 70 testemunhos pessoais de oficiais e soldados israelenses que combateram em diferentes unidades e lugares durante o último confronto. As 136 páginas trazem confissões e reflexões sobre as práticas de um Estado que se jacta de ser a única democracia do Oriente Médio e de um Exército que acredita ser o mais moralizado do mundo. "Eu me considero um patriota e amo Israel, mas há condutas que me parecem injustificáveis", prossegue Gvaryahu, na sede da associação, em Tel Aviv.

"Durante a operação, disseram para nós: 'Algo suspeito? Então pode atirar. Algo que pareça suspeito? Um edifício alto ou uma cabeça que aparece em uma janela? (...) Se aquela pessoa não devia estar ali, então ela não é inocente", (Soldado Q).

O porta-voz da Breaking the Silence conta que "um dos soldados nos contou como, em certas ocasiões, não era que as regras de enfrentamento (rules of engagement ou ROEs, no jargão militar) fossem flexíveis, mas inexistentes". "Um companheiro acabava de falecer no marco de uma incursão terrestre e o comandante da unidade lhes ordenou que alinhassem os tanques e começassem a atirar projéteis contra qualquer alvo, aleatoriamente", relata.

"Em outra ocasião, conduzindo (um tanque), avistei uma casa, decidi que me irritava porque era de cor púrpura e perguntei: 'Posso atirar?' 'Claro, vá em frente', disseram. E bum! Não houve supervisão, ninguém se importou e isso é tudo. Estas foram nossas regras de enfrentamento durante a operação Margem Protetora", conta o Soldado Z em testemunho presente no relatório.

Segundo explica Avner Gvaryahu, em certas ocasiões as ordens militares diziam aos soldados que estavam entrando em zona de guerra, da qual os civis já haviam sido evacuados. "Apesar disso, temos muitos testemunhos de soldados que entraram nessas zonas e avistaram civis, às vezes idosos, deficientes, jovens, gente que voltava para buscar seus pertences", assegura. "Um dos testemunhos mais impressionantes nos conta como antes de entrar em cada construção, a primeira coisa que faziam era lançar granadas para eliminar tudo que estivesse lá dentro, sem saber de antemão se eram combatentes ou civis", complementa.

Ainda que a densidade da população na Faixa de Gaza seja altíssima, a porcentagem de civis mortos e feridos durante a última guerra não tem precedentes, segundo a organização Breaking the Silence. Se durante as operações prévias o número de mortos e feridos palestinos foi de quase 50% do total, no caso da Margem Protetora, ele se aproximou de 75%. "O principal motivo é que, desde a cúpula, deram-se ordens para que se disparasse contra tudo o que se movesse", complementa o porta-voz da organização.

"Se tenho que elaborar uma conclusão para o informe que apresentamos agora, ela será a de que o Exército israelense, do qual gostaria de me sentir orgulhoso, a principal instituição de meu país, jogou pela janela todos os valores que pensávamos ter", elabora Gvaryahu.

"Como elemento de comparação, eu observaria que durante a operação Chumbo Fundido o Exército israelense disparou cerca de 3.000 projéteis de artilharia e de tanque, enquanto na Margem Protetora foram mais de 19 mil disparos". Segundo pontua Gvaryahu, esses projéteis são pouco precisos – e sua trajetória não pode ser corrigida, como ocorre com os mísseis guiados por laser disparados por caças e drones –, causando a morte de qualquer pessoa em um raio de 50 metros e ferindo todos os que estejam em um raio de 150 metros.

A sequência de testemunhos vem rebater a explicação oficial de que a campanha do ano passado foi uma guerra de precisão em que os militares israelenses utilizaram todo tipo de medidas preventivas e novas tecnologias para minimizar as baixas civis. "Houve, de fato, casos em que se avisou previamente que os civis deveriam ser evacuados, e também se chegou a utilizar armas inteligentes para minimizar baixas colaterais, mas essa não foi a regra", assegura Gvaryahu.

Indagado sobre se combatentes palestinos utilizaram ou não civis como escudo humano para dificultar o trabalho do Exército israelense, ele afirma não ter casos concretos dentre os 70 testemunhos, o que não quer dizer que isso não ocorreu. "Mas, se ocorreu, aí está a diferença: no fato de que estas são consideradas organizações terroristas, enquanto nós representamos o Exército, que, teoricamente, enaltece os mais altos valores do código militar e, portanto, não pode utilizar este tipo de tática", conclui.

Os relatos foram obtidos anonimamente, com vídeos em que só aparecem o nome da unidade ou o cenário do combate, sem expor dados pessoais dos soldados para evitar qualquer medida de sanção.

Pouco antes do lançamento do informe, o Exército de Israel denunciava em um comunicado a suposta falta de boa-vontade da associação israelense para cooperar e compartilhar o material recolhido para a elaboração de seu último informe. "Hoje, assim como em outras ocasiões do passado, solicitamos à organização Breaking the Silence que nos proporcionasse todo tipo de evidência ou testemunho relativo às ações do Exército antes da publicação, para assim colocamos em curso as investigações formais adequadas".

A organização israelense nega a falta de cooperação em outro comunicado. "Breaking the Silence mandou ao Chefe do Estado Maior do Exército uma carta, há um mês e meio, solicitando um encontro", respondem.

Um dos problemas das guerras de Gaza é que o Exército não permite a entrada de jornalistas israelenses, temendo que sejam sequestrados e utilizados como moeda de troca. Ante a ausência dos meios de comunicação no território, a única fonte de informação para a opinião pública israelense é o próprio Exército.

O máximo que permitiram foi que entrasse algum correspondente acompanhando as tropas, segundo afirma a organização Breaking the Silence. Para demonstrá-lo, mostraram uma fotografia tirada em julho do ano passado em que se pode ver um repórter de um canal israelense munido de capacete antifragmentos e colete à prova de balas, com um soldado como operador de câmera.

Desta forma, o fluxo informativo é completamente controlado pelo Escritório do Porta-Voz do Exército e sujeito à censura militar. São minimizados os números de civis mortos e feridos e aumentados os de combatentes, que são apresentados como terroristas sanguinários que querem matar civis israelenses (das 73 baixas israelenses, apenas 7 foram civis; os outros 66 foram soldados).

"Como cidadão israelense durante a última operação, eu estava escutando o que diziam nossas emissoras de rádio, vendo o que nos mostravam as redes de TV e lendo o que nos diziam os jornais", comenta Gvaryahu. "Todos repetiam que estávamos fazendo o que podíamos para proteger os civis, mas a triste realidade é que depois de falar com alguns soldados, de escutar os testemunhos de outras pessoas a título de evidência, posso dizer que isso era mentira", denuncia.

A alta porcentagem de civis e, sobretudo, de menores de idade entre os mais de 2.100 palestinos que perderam a vida em consequência da operação Margem Protetora fez com que até mesmo o Secretário Geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, solicitasse publicamente o estabelecimento de uma comissão independente que elucidasse se ocorreram crimes de guerra, após o Exército israelense atacar sete escolas da Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA) e as milícias palestinas as terem utilizado em pelo menos três ocasiões para acobertar ou armazenar explosivos. Na opinião do advogado israelense Michael Sfard, "o que vimos durante a operação foi uma violação sistemática das leis de guerra reunidas no direito internacional humanitário".

"As acusações de supostos crimes de guerra são muito mais difíceis de provar, pois neste caso se tratam de violações individuais, que abrangem responsabilidade criminal e que devem ser investigadas individualmente", complementa o jurista especializado em Direitos Humanos. "O que vimos foi um padrão geral em que as ordens militares pervertem as regras de enfrentamento e ordenam aos soldados que qualquer um que não seja israelense se converta em alvo legítimo, o que rompe com o princípio de distinção entre combatentes e civis", argumenta.

Segundo Sfard, seria necessário que o governo criasse uma comissão nacional de investigação (modalidade jurídica de comitê presidido por um magistrado do Tribunal Supremo, que já foi empregado em situações anteriores como a guerra do Líbano e o assassinato do premiê Yitzhak Rabin) "que cumpra com os padrões internacionais de independência, eficácia e transparência".

Mas, uma vez que para criar uma comissão com estas características é necessária a vontade política correspondente e o Executivo israelense não aparenta tê-la, a organização Breaking the Silence insiste que seja necessária uma investigação externa, que leve a cabo um trabalho similar àquele feito pela Comissão Goldstone para a apuração das responsabilidades durante a operação Chumbo Fundido.


Tradução: Henrique Mendes

Matéria original publicada no site do jornal espanhol El Diario.

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