Somam mais de 46 mil os trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão nos últimos 20 anos no Brasil. Os dados são do Grupo de Fiscalização Móvel (GEFM), formado por auditores do Ministério do Trabalho, membros do Ministério Público do Trabalho e Federal e forças policiais. Apesar de a abolição ter ocorrido há mais de 120 anos, o que caracteriza hoje o trabalho escravo? Podem os trabalhadores submetidos a condições desumanas ecoar algum vestígio da escravidão abolida em 1888?
Para responder a esta pergunta, vamos retomar o conceito da relação de exploração do trabalho mais antiga do mundo. O escravo deve ser entendido como um ser humano propriedade de outro ser humano. Partindo dessa premissa, a escravidão poderia ocorrer acidentalmente, como uma relação social acessória ou secundária, ou se constituir na principal relação de exploração de todo um sistema econômico.
Podemos diferenciar regimes de escravidão pela extensão do que poderíamos chamar da extensão dos “direitos” do proprietário sobre seu escravo. Nesse sentido, as diversas formas de escravidão se distinguiam pela perpetuidade (o escravo o seria ou não por toda a sua vida) e a hereditariedade (transmitida ou não aos seus filhos). Em muitas sociedades era comum a escravidão estatal, na qual o Estado recrutava trabalhadores de maneira forçada.
No Brasil, a história da escravidão iniciou-se com a decisão dos portugueses de ocuparem efetivamente a porção de terra que lhes cabia na América estipulada pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494. Foi a expansão comercial europeia a partir do século XV, encabeçada por portugueses e espanhóis, que fez ressurgir a escravidão, principalmente por meio da introdução do cultivo da cana e da produção de açúcar.
Em mais de 300 anos de sua existência no País, último do Ocidente a aboli-la, a escravidão africana estendeu-se pelas plantações, minas, cidades e um vasto conjunto de ocupações, ligadas ou não às principais atividades econômicas desenvolvidas em nossa história colonial e durante um significativo período de nossa existência como país independente. Fomos, portanto, uma sociedade escravista.
Uma mescla de interesses econômicos encabeçados por setores da burguesia inglesa e a propagação de ideais de igualdade que inspiraram diversos lutadores, cativos e ex-cativos foram colocando em xeque essa sociedade escravista ao longo do século XIX. Porém, se o resultado dessa luta foi a abolição do direito de propriedade dos seres humanos uns sobre outros, isso não significou o fim da violência como principal ferramenta para a exploração do trabalho em nosso país. Em primeiro lugar, a violência cometida contra os libertos por meio da política de embranquecimento da população brasileira ao estimular o trabalho imigrante europeu em detrimento dos ex-escravos. Em segundo, a ausência de quaisquer direitos para o trabalhador.
O trabalho livre ou assalariado, determinante no modo de produção capitalista, consolidou-se por boa parte da Europa no período em que, no Brasil, estávamos abolindo a escravidão. A liberdade sugerida pelo termo trabalho livre deve, no entanto, ser matizada. A verdade é que os camponeses, afastados dos meios de reprodução de sua vida material – transformados em propriedade privada capitalista –, não tiveram mais nada a fazer a não ser a venda de sua força de trabalho para a burguesia. A relação de exploração do trabalho começa a ser regida por um contrato entre aqueles que têm a força de trabalho e aqueles que detêm os meios de produção – terra, máquinas, instrumentos de trabalho, matérias-primas e minas – e que compram horas de trabalho. Se essa relação se apresenta de maneira ideal como um contrato entre duas partes iguais interessadas, a realidade era que, desprovidos de qualquer meio de subsistência, os trabalhadores competiam pelas vagas de emprego, submetendo-se às piores condições de remuneração como única maneira de subsistir. Donos de si mesmos e supostamente únicos responsáveis por seu destino, os setores populares saíram da tirania exercida pelos senhores feudais para mergulhar na tirania do mercado de trabalho e suas “leis sagradas” de oferta e demanda.
Em pouco tempo, ficou claro que era necessário refrear o ímpeto por trabalho que a pujante economia industrial exigia e estabelecer regras claras para reger o mercado. Essa tomada de consciência foi responsável pela criação dos sindicatos, que, por meio de greves e intensas mobilizações, conseguiu impor alguns limites à exploração, como a jornada máxima de trabalho, o direito ao descanso semanal, a restrição ao trabalho de mulheres grávidas e crianças etc.
No Brasil não foi diferente. Poucos anos após a abolição, os sindicatos ganharam uma enorme importância. Entre as décadas de 1910 e 1930, aumentaram enormemente as greves e mobilizações nos principais centros industriais, ao mesmo tempo que o modelo agroexportador entrava em declínio e a indústria ganhava cada vez mais importância para economia nacional.
A luta dos trabalhadores brasileiros pela regulamentação da exploração de mão de obra ocorreu concomitantemente à dos trabalhadores europeus, da América Latina e dos EUA. Uma das principais consequências foi a criação, ao fim da Primeira Guerra Mundial, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), responsável por regulamentar o mercado de trabalho nos países a ela associados. Deve-se ter em conta que a criação da OIT respondeu mais ao medo das classes dominantes da revolução social, cujo exemplo máximo foi a Revolução Russa de 1917, do que a uma atitude de compreensão sobre os tormentos e mazelas que a superexploração produzia entre as classes trabalhadoras. Assim, a OIT esforçou-se em estabelecer um patamar máximo de exploração que garantisse o mínimo de dignidade aos trabalhadores. Em sua 29ª Convenção realizada em 1930, foi definido, sob o caráter de lei internacional, o trabalho forçado como toda atividade exigida de uma pessoa sob a ameaça de sanção e/ou para qual não se tenha oferecido espontaneamente.
A adoção ou não das medidas elaboradas pela OIT dependia da correlação de forças entre o Estado, os trabalhadores organizados e os patrões. Ignorados e reprimidos sumariamente durante toda a Primeira República, os trabalhadores brasileiros começaram a ter suas demandas integradas à agenda política do Estado Nacional na era Vargas (1930-1945). Fruto de um cálculo político das classes dominantes que assumiram a direção do Estado após a Revolução de 1930 e da relevância que o movimento sindical adquiriu durante a Primeira República, a incorporação dos trabalhadores por meio da legislação trabalhista foi acompanhada também da repressão de seus setores mais radicais. Esse processo culmina com a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943, estabelecendo um patamar máximo de exploração do trabalho. Não é à toa que na mesma época foi tipificado no Código Penal Brasileiro como crime a submissão de trabalhadores a situação análoga à escravidão, obrigando esses a jornadas extenuantes, a condições degradantes ou restringindo sua locomoção.
Apesar dessa importante vitória dos trabalhadores e de constar como direitos adquiridos, as leis trabalhistas, além de serem insuficientes por não abarcarem os trabalhadores rurais e os domésticos, sofreram ao longo do tempo constantes ataques para serem “flexibilizados” seus ordenamentos. Nada mais do que um eufemismo para a ampliação da margem de exploração por parte dos patrões.
Hoje, algumas modalidades de precarização do trabalho são legalizadas, a exemplo da terceirização. Isso não basta a diversos grupos econômicos no Brasil, principalmente fazendeiros e empresários do ramo têxtil e da construção civil, que continuam praticando a submissão de trabalhadores em situação análoga à escravidão, ou seja, o impedimento de o trabalhador se desligar do patrão por fraude, dívidas e violência, e a sujeição a condições de trabalho desumanas.
No campo, a sanha por maiores margens de lucratividade utiliza-se de trabalhadores que, por intermédio dos chamados gatos, são recrutados em regiões carentes e transportados para centenas e às vezes milhares de quilômetros de distância de suas comunidades. Alocados em regiões de expansão da fronteira agrícola, longe dos olhos das autoridades responsáveis ou com a anuência de autoridades locais, esses trabalhadores se veem desprovidos de todas as formas de proteção – sindical, familiar ou comunal – e podem ter todos os seus direitos violados. Nos centros urbanos, onde esse processo de dessocialização para submeter trabalhadores é mais difícil de ser imposto, os empresários optam por explorar imigrantes ilegais de países limítrofes. Atualmente, o alvo são novamente os africanos e haitianos.
Uma verdadeira luta vem sendo travada por diversas organizações para que ocorra a Segunda Abolição da Escravidão, por meio da aprovação da PEC 57-A, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco da propriedade do empresário flagrado utilizando-se de trabalhadores em situação de escravidão para a reforma agrária ou para o uso social urbano. A proibição de seres humanos serem proprietários de outros seres humanos desde 1888 não impede que a violência contra os trabalhadores ainda seja uma realidade em nossa sociedade. Infelizmente.
Publicado na edição 92, de novembro de 2014
Para responder a esta pergunta, vamos retomar o conceito da relação de exploração do trabalho mais antiga do mundo. O escravo deve ser entendido como um ser humano propriedade de outro ser humano. Partindo dessa premissa, a escravidão poderia ocorrer acidentalmente, como uma relação social acessória ou secundária, ou se constituir na principal relação de exploração de todo um sistema econômico.
Podemos diferenciar regimes de escravidão pela extensão do que poderíamos chamar da extensão dos “direitos” do proprietário sobre seu escravo. Nesse sentido, as diversas formas de escravidão se distinguiam pela perpetuidade (o escravo o seria ou não por toda a sua vida) e a hereditariedade (transmitida ou não aos seus filhos). Em muitas sociedades era comum a escravidão estatal, na qual o Estado recrutava trabalhadores de maneira forçada.
No Brasil, a história da escravidão iniciou-se com a decisão dos portugueses de ocuparem efetivamente a porção de terra que lhes cabia na América estipulada pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494. Foi a expansão comercial europeia a partir do século XV, encabeçada por portugueses e espanhóis, que fez ressurgir a escravidão, principalmente por meio da introdução do cultivo da cana e da produção de açúcar.
Em mais de 300 anos de sua existência no País, último do Ocidente a aboli-la, a escravidão africana estendeu-se pelas plantações, minas, cidades e um vasto conjunto de ocupações, ligadas ou não às principais atividades econômicas desenvolvidas em nossa história colonial e durante um significativo período de nossa existência como país independente. Fomos, portanto, uma sociedade escravista.
Uma mescla de interesses econômicos encabeçados por setores da burguesia inglesa e a propagação de ideais de igualdade que inspiraram diversos lutadores, cativos e ex-cativos foram colocando em xeque essa sociedade escravista ao longo do século XIX. Porém, se o resultado dessa luta foi a abolição do direito de propriedade dos seres humanos uns sobre outros, isso não significou o fim da violência como principal ferramenta para a exploração do trabalho em nosso país. Em primeiro lugar, a violência cometida contra os libertos por meio da política de embranquecimento da população brasileira ao estimular o trabalho imigrante europeu em detrimento dos ex-escravos. Em segundo, a ausência de quaisquer direitos para o trabalhador.
O trabalho livre ou assalariado, determinante no modo de produção capitalista, consolidou-se por boa parte da Europa no período em que, no Brasil, estávamos abolindo a escravidão. A liberdade sugerida pelo termo trabalho livre deve, no entanto, ser matizada. A verdade é que os camponeses, afastados dos meios de reprodução de sua vida material – transformados em propriedade privada capitalista –, não tiveram mais nada a fazer a não ser a venda de sua força de trabalho para a burguesia. A relação de exploração do trabalho começa a ser regida por um contrato entre aqueles que têm a força de trabalho e aqueles que detêm os meios de produção – terra, máquinas, instrumentos de trabalho, matérias-primas e minas – e que compram horas de trabalho. Se essa relação se apresenta de maneira ideal como um contrato entre duas partes iguais interessadas, a realidade era que, desprovidos de qualquer meio de subsistência, os trabalhadores competiam pelas vagas de emprego, submetendo-se às piores condições de remuneração como única maneira de subsistir. Donos de si mesmos e supostamente únicos responsáveis por seu destino, os setores populares saíram da tirania exercida pelos senhores feudais para mergulhar na tirania do mercado de trabalho e suas “leis sagradas” de oferta e demanda.
Em pouco tempo, ficou claro que era necessário refrear o ímpeto por trabalho que a pujante economia industrial exigia e estabelecer regras claras para reger o mercado. Essa tomada de consciência foi responsável pela criação dos sindicatos, que, por meio de greves e intensas mobilizações, conseguiu impor alguns limites à exploração, como a jornada máxima de trabalho, o direito ao descanso semanal, a restrição ao trabalho de mulheres grávidas e crianças etc.
No Brasil não foi diferente. Poucos anos após a abolição, os sindicatos ganharam uma enorme importância. Entre as décadas de 1910 e 1930, aumentaram enormemente as greves e mobilizações nos principais centros industriais, ao mesmo tempo que o modelo agroexportador entrava em declínio e a indústria ganhava cada vez mais importância para economia nacional.
A luta dos trabalhadores brasileiros pela regulamentação da exploração de mão de obra ocorreu concomitantemente à dos trabalhadores europeus, da América Latina e dos EUA. Uma das principais consequências foi a criação, ao fim da Primeira Guerra Mundial, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), responsável por regulamentar o mercado de trabalho nos países a ela associados. Deve-se ter em conta que a criação da OIT respondeu mais ao medo das classes dominantes da revolução social, cujo exemplo máximo foi a Revolução Russa de 1917, do que a uma atitude de compreensão sobre os tormentos e mazelas que a superexploração produzia entre as classes trabalhadoras. Assim, a OIT esforçou-se em estabelecer um patamar máximo de exploração que garantisse o mínimo de dignidade aos trabalhadores. Em sua 29ª Convenção realizada em 1930, foi definido, sob o caráter de lei internacional, o trabalho forçado como toda atividade exigida de uma pessoa sob a ameaça de sanção e/ou para qual não se tenha oferecido espontaneamente.
A adoção ou não das medidas elaboradas pela OIT dependia da correlação de forças entre o Estado, os trabalhadores organizados e os patrões. Ignorados e reprimidos sumariamente durante toda a Primeira República, os trabalhadores brasileiros começaram a ter suas demandas integradas à agenda política do Estado Nacional na era Vargas (1930-1945). Fruto de um cálculo político das classes dominantes que assumiram a direção do Estado após a Revolução de 1930 e da relevância que o movimento sindical adquiriu durante a Primeira República, a incorporação dos trabalhadores por meio da legislação trabalhista foi acompanhada também da repressão de seus setores mais radicais. Esse processo culmina com a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943, estabelecendo um patamar máximo de exploração do trabalho. Não é à toa que na mesma época foi tipificado no Código Penal Brasileiro como crime a submissão de trabalhadores a situação análoga à escravidão, obrigando esses a jornadas extenuantes, a condições degradantes ou restringindo sua locomoção.
Apesar dessa importante vitória dos trabalhadores e de constar como direitos adquiridos, as leis trabalhistas, além de serem insuficientes por não abarcarem os trabalhadores rurais e os domésticos, sofreram ao longo do tempo constantes ataques para serem “flexibilizados” seus ordenamentos. Nada mais do que um eufemismo para a ampliação da margem de exploração por parte dos patrões.
Hoje, algumas modalidades de precarização do trabalho são legalizadas, a exemplo da terceirização. Isso não basta a diversos grupos econômicos no Brasil, principalmente fazendeiros e empresários do ramo têxtil e da construção civil, que continuam praticando a submissão de trabalhadores em situação análoga à escravidão, ou seja, o impedimento de o trabalhador se desligar do patrão por fraude, dívidas e violência, e a sujeição a condições de trabalho desumanas.
No campo, a sanha por maiores margens de lucratividade utiliza-se de trabalhadores que, por intermédio dos chamados gatos, são recrutados em regiões carentes e transportados para centenas e às vezes milhares de quilômetros de distância de suas comunidades. Alocados em regiões de expansão da fronteira agrícola, longe dos olhos das autoridades responsáveis ou com a anuência de autoridades locais, esses trabalhadores se veem desprovidos de todas as formas de proteção – sindical, familiar ou comunal – e podem ter todos os seus direitos violados. Nos centros urbanos, onde esse processo de dessocialização para submeter trabalhadores é mais difícil de ser imposto, os empresários optam por explorar imigrantes ilegais de países limítrofes. Atualmente, o alvo são novamente os africanos e haitianos.
Uma verdadeira luta vem sendo travada por diversas organizações para que ocorra a Segunda Abolição da Escravidão, por meio da aprovação da PEC 57-A, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco da propriedade do empresário flagrado utilizando-se de trabalhadores em situação de escravidão para a reforma agrária ou para o uso social urbano. A proibição de seres humanos serem proprietários de outros seres humanos desde 1888 não impede que a violência contra os trabalhadores ainda seja uma realidade em nossa sociedade. Infelizmente.
Publicado na edição 92, de novembro de 2014
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