Campanha pela convocação de uma Constituinte Exclusiva para a Reforma Política colheu mais de 7 milhões de assinaturas. |
Algumas questões têm sido levantadas por opositores de movimentos sociais que defendem a mobilização das pessoas e grupos organizados para legitimar uma transformação de nosso sistema político por meio de uma Constituinte soberana (originária), exclusiva (eleita exclusivamente para esta função) e temática (para fazer a reforma política). Como já muitas vezes dito e escrito, isto é uma novidade, pois as Constituintes originárias (soberanas), exclusivas (eleitas para fazer a nova constituição e depois dissolvidas) nunca foram temáticas, pois não se restringiram a um tema constitucional mas elaboraram uma nova Constituição. Sobre a possibilidade da realização desta forma de Constituinte, também muito já foi dito, e claro que, embora ainda não realizada, é perfeitamente aceitável seguindo a lógica da Teoria da Constituição. Um poder que se legitima na democracia, entendida como vontade popular expressa, pode ser limitado pelo movimento democrático que o convoca e legitima ou autolimitar-se.
Um pressuposto para compreensão da teoria do poder constituinte é analisar a relação entre Democracia e Constituição. Constituição não é sinônimo de democracia, o constitucionalismo não nasceu democrático e nasceu para trazer segurança, inicialmente para homens, brancos e proprietários. A aproximação entre democracia e constituição vêm da luta dos movimentos sociais, sindicatos, trabalhadores na Europa do século XIX por direitos, entre estes, pelo direito ao voto igualitário. Esta aproximação necessária entre constituição e democracia significa transformação com menos risco. Em outras palavras, a constituição representa a segurança (por meio da estabilidade, busca de permanência e previsibilidade), enquanto a democracia representa a transformação (que implica em risco, uma vez que ameaça a estabilidade imposta pela constituição). Todavia, o risco é inevitável nas sociedades que buscam liberdade e democracia. Logo, Constituição democrática ou Democracia constitucional significa transformação com respeito a um núcleo duro de direitos que não podem ser tocados pelos poderes constituídos.
A teoria do poder constituinte também prevê um poder reformador (por meio de emenda ou revisão) para que o texto possa acompanhar as transformações sociais, culturais, econômicas, políticas (etc). Sobre tal característica do poder constituinte devemos considerar dois aspectos, sendo um teórico (que diz respeito aos limites do poder reformador) e um fático (que diz respeito à desconexão entre os interesses defendidos pelos parlamentares e os interesses do povo, que deveria estar por eles representados).
Quanto aos aspectos teóricos, o poder de reforma à constituição deverá ser limitado, significando que a vontade da maioria (parlamentar), que deveria expressar a vontade da maioria da população, pode promover muitas mudanças, mas encontra limites constitucionais em determinados temas, princípios, direitos, que são imutáveis pelos mecanismos formais estabelecidos pela própria constituição. Nisto reside um ponto essencial do poder reformador em uma teoria da constituição (democrática representativa): não é possível romper formalmente com a Constituição, só modifica-la com limites. Desta ideia decorre outra ideia muito importante: como o texto não pode pretender ser eterno, e como a tensão entre democracia (transformação) e constituição (segurança) é gerada pelos limites que a constituição estabelece para as transformações (que surgem de maiorias), a única possibilidade de ruptura com a Constituição é por meio da democracia em sua expressão não representativa, ou seja, popular.
Isto não é novidade, e gerações desde a Revolução Francesa (podemos falar em alguma medida da Inglaterra se considerarmos a participação de igualitaristas depois traídos pelos burgueses) sabem o que é um movimento popular democrático de ruptura. Claro também é, e a história tem nos mostrado, que os riscos sempre existiram, e que muitas vezes as vontades de poucos têm prevalecido sobre os interesses de muitos. A crise grave de representatividade das democracias “liberais” representativas em vários países do mundo tem mostrado o distanciamento das instituições que deveriam viabilizar a democracia, das vontades populares. Vale lembrar ainda a enorme concentração do poder econômico, e com isto dos meios de comunicação social, que têm em diversos países, manipulado a opinião pública, distorcendo e encobrindo fatos. Isto inviabiliza qualquer debate público livre e democrático, fundado sobre informações distorcidas, pautas artificialmente criadas e mentiras. Ver a nossa democracia representativa como expressão da vontade popular talvez seja incorreto.
Postas estas considerações iniciais vejamos alguns argumentos defendidos contra o plebiscito popular para a realização de uma constituinte soberana, exclusiva, para a reforma política (temática). Primeira questão levantada é a informalidade do plebiscito. Ora, esta é sua principal característica legitimadora. Não é admissível a possibilidade de ruptura com a Constituição ou parte dela por meios formais. Esta, como dito acima é a essência da ideia de segurança oferecida pela constituição. A ruptura só é possível com a democracia. A ideia do plebiscito popular é permitir a gradual mobilização da sociedade em torno do tema, pretendendo chegar a um momento onde esta vontade popular (a mobilização popular) se torne irresistível. Claro, portanto, que deste plebiscito não se espera a transformação do sistema político de forma soberana imediatamente: é um processo. Um plebiscito formal seria golpe.
O movimento não pretende revogar a atual Constituição, mas, como assistimos recentemente na Bolívia e no Equador, um movimento popular democrático, uma ampla mobilização popular pode gerar constituições radicalmente democráticas rompendo com séculos de dominação e subalternização, assim como de um falso jogo “democrático parlamentar” que encobria parlamentos e governo que sempre fizeram o jogo de elites econômicas e étnicas nestes países.
Em nenhum momento se esperou ou se espera uma situação ideal de deliberação. Trata-se de conflito, e por isto a proposta do plebiscito visa envolver mais pessoas, para movimentar a sociedade em torno do debate. Por isto ouvir a sociedade a respeito do que se pretende mudar.
O movimento em torno do plebiscito popular se fundamenta na ideia da inexistência de representatividade em nosso parlamento, apoiado em dados expressivos, relativos a composição do Congresso Nacional. Logo, como esperar quórum de 3/5 de um parlamento que não nos representa? De um parlamento onde cerca de 40% dos representantes são de famílias tradicionais, algumas no poder desde 1822? Incompreensível esta afirmação.
O texto apresentado por renomados e importantes teóricos do Direito brasileiro apresenta uma revelação interessante. É escrito a partir de uma perigosa premissa moderna que podemos expressar no dispositivo “nós x eles”. Assim encontramos expressões como “eles” apelam para a judicialização; “eles” passam a defender reformas contra a constituição; “eles” não acreditam na Constituição; “a Constituição deles”; ou então, encontramos frases como “o Brasil fez uma escolha por meio de uma Constituinte democrática que produziu uma Constituição democrática”; “nossas” escolhas foram se atualizando; “sabemos o que queremos e o que não queremos”. Ora, quem é o “nós” legitimo; quem é o “Brasil” que fez esta escolha? A “nação”? A maioria? Quem são o “eles” ilegítimo e ingênuo? A sociedade civil? Os sindicatos? Os movimentos sociais?
Não se defende em nenhum momento zerar tudo pois isto seria uma impossibilidade histórica. O presente é fruto das contradições e lutas do passado assim como o futuro estará inevitavelmente impregnado de presente, das lutas que realizamos pela democracia e por direitos para todos que os movimentos sociais e sindicatos realizam no presente. Não é compreensível a acusação de que “eles” precisam superar esta dicotomia, não acreditam na democracia. Ora, o que se está questionando é o fato de que os representantes e os mecanismos de representação não são suficientemente democráticos, ou pouco democráticos. O que se pretende é aperfeiçoar a democracia, o que se pretende é mais participação.
Incompreensível a afirmação de que “eles” defendem uma Constituição isenta da política e do político. Ora, o movimento é político, trata-se mobilização popular, movimentos sociais. A nomeação do “eles” de “esquerdismo” é um passo perigoso para ocultar toda a diversidade do movimento e classifica-lo, reduzi-lo e eliminá-lo. Esta técnica a história já nos mostrou, lamentavelmente, algumas vezes.
O que se pretende, ao mobilizar as pessoas, os movimentos sociais, em torno do debate do tema é justamente buscar a mudança da Constituição e as leis a partir da mobilização popular. De uma revolução surgem novas leis e uma nova Constituição. Trata-se da política impulsionando a transformação e não o contrário. Neste ponto o texto se mostra bastante contraditório com o que afirma antes.
No texto ainda encontramos a estranha afirmativa que “eles” os defensores da tese, “não compreendem bem a história”. Interessante esta afirmativa, pois, “nós”, os que escrevem o texto, compreendem bem a história. Quem tem o verdadeiro saber. Ainda há a afirmativa que os movimentos sociais, sindicatos, sociedade civil organizada, pessoas que participam pelo movimento por uma constituinte exclusiva, soberana e temática, são (eles), ingênuos e equivocados. Interessante isto: “nós” (quem?) sabemos história, não somos ingênuos, sabemos a verdade, não somos equivocados, enquanto “eles” não sabem a história, são ingênuos e equivocados, numa simplificação da enorme diversidade dos movimentos sociais, estudantis, sindicatos, envolvidos no processo de luta por transformação social.
Finalmente, uma última interessante afirmativa: dissertações e teses sobre o poder constituinte não servem para nada. Segundo os autores foram escritas centenas de teses sobre poder constituinte, sobre as regras do jogo, sobre a democracia e o povo ignora: “Fora com a literatura que prega a democracia; fora com as aulas de direito constitucional” afirma o texto. Chegamos então ao limite do absurdo: a democracia se encontra nos conceitos acadêmicos. Esta informação talvez seja a mais importante do texto. Precisamos fazer uma autocritica. Talvez o problema seja uma academia (no campo do direito) fechada em si mesma, que pensa muito mais o nosso direito e nossa democracia a partir de autores norte-americanos, alemães e franceses e por vezes ignora ou esquece as lutas sociais, os movimentos sociais, nossa realidade social, assim como as relações de nosso parlamento com seus representados.
*José Luiz Quadros de Magalhães é professor na UFMG e PUC-MG.
**Tatiana Ribeiro de Souza é professora na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
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