sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Estatuto da Criança e do Adolescente: principais elementos e a redução da maioridade penal¹

Por Caio Botelho²
22 anos após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é possível analisar a sua aplicação sob diversos ângulos: há quem propale o seu suposto retumbante fracasso, como existe os defensores dos princípios estabelecidos nessa compilação e os resultados por ele obtidos. 

Nas próximas linhas, faremos uma rápida análise sobre o significado desses 22 anos do ECA e os impactos – positivos ou não – que o mesmo acarretou para o conjunto da sociedade brasileira. Para isso, apresentaremos também as principais diretrizes e objetivos do Estatuto, com a óbvia idéia de embasar o leitor com maiores informações acerca desse instrumento legal, até mesmo para que os argumentos que se seguirem se tornem mais palatáveis e compreensíveis.


No entanto, jamais poderíamos nos furtar de apresentar a discussão sobre uma das principais polêmicas em debate no Brasil de hoje: a redução da maioridade penal. Essa proposta, recorrentemente apresentada – notoriamente pelos meios de comunicação – como uma saída para a onda de violência que varre o território nacional, merece atenção em qualquer discussão que tenha o ECA como foco principal, já que a defesa da idade penal de 18 anos é uma das principais ideias do Estatuto. 

Naturalmente, não existe nesse artigo a pretensão de apontar soluções para os diversos problemas relacionados à criança e ao adolescente no Brasil, afinal de contas, a complexidade dessas questões exige muito mais do que um breve e insuficiente estudo sobre o assunto. Porém, a contribuição para o enriquecimento desse debate já colaborara para o deslocamento dessa matéria para o centro das grandes questões nacionais: por apenas isso, já vale a pena tratar do Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Parâmetros e Diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente 

Para começo de conversa, é imprescindível que seja apresentado os principais pontos da Lei 8.069/90. Essa necessidade é fruto de uma verdadeira lógica de desinformação adotada pela mídia, que diariamente distorce o verdadeiro sentido do Estatuto, contribuindo para que a população brasileira o compreenda como um arcabouço de direitos sem deveres ou atos infracionais. 

Ledo engano: o ECA, além de garantir ao público em questão direitos específicos e fundamentais, também dispõe de mecanismos de punição ao menor infrator, sem contar com a indispensável regulamentação de temas como guarda e idade mínima para o exercício de atividade remunerada, entre diversos outros. 

Vejamos o que diz o artigo 227 da Constituição Federal: 

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade (grifo nosso), o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." 

Esse dispositivo constitucional, reescrito praticamente com as mesmas palavras no artigo quarto do ECA, procura fazer compreender a criança e o adolescente não mais como “adultos em miniatura”, visão comum em épocas anteriores a nossa, mas como uma fase especial da vida de um cidadão, cujos enlaces contribuem significativamente para a formação do homem. Daí a importância em se estabelecer proteções especiais para essa faixa etária. 

Outra questão essencial está descrita nos artigos 15 e 16 do Estatuto: o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade. Ou seja, a criança e o adolescente, tanto quanto o adulto, também tem assegurado juridicamente o direito de ir e vir, de opinião e expressão, de crença e culto religioso, entre outros. No entanto, um direito em especial chama a atenção: o de brincar e se divertir. 

Isso porque os autores do ECA compreenderam – de modo perfeitamente correto – que o simples ato de brincar contribui para a formação da criança e do adolescente. Trata-se de um direito exclusivo desse público (ao adulto, é assegurado o direito ao lazer). A Lei 11.104/05, por exemplo, obriga os Hospitais que oferecerem atendimento pediátrico a manterem brinquedotecas em funcionamento, sob pena de cometerem ato infracional. 

Também é garantido à criança e ao adolescente o direito a participação da vida política. Ou seja, discussões políticas jamais devem ser tratadas como “assuntos de adulto”, sob pena de infringir o Estatuto. Também é garantido a organização em entidades estudantis (artigo 53) e o voto opcional aos maiores de 16 e menores de 18 anos (CF). 

O Estatuto também assegura o direito do nascido de relação extraconjugal, proibindo qualquer tipo de discriminação motivada por esta condição e garantindo as mesmas condições dos filhos “legítimos”, inclusive na distribuição de herança (artigo 20 do ECA). 

Quando o assunto é adoção, o Estatuto estabelece idade mínima de dezoito anos, com diferença de dezesseis entre o adotante e o adotado (artigos 39 a 42 do ECA). Já no que diz respeito à adoção por casais homossexuais, o ECA é omisso, valendo nesse caso o que está estabelecido no Código Civil, que proíbe a adoção por duas pessoas no caso de inexistência de união estável entre um homem e uma mulher (artigo 1622 do CC). O mecanismo é considerado como uma demonstração clara de homofobia por parte da lei brasileira. 

Quanto ao direito à educação, o artigo 53 do Estatuto afirma o seguinte: “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando o pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (...)”. Também deve ser garantida a igualdade do acesso e permanência na escola, como também o direito de contestar os critérios de avaliação adotados pela sua instituição de ensino. Ainda no artigo 53, é reafirmado o direito à escola pública, de qualidade e próxima à sua residência. 

No que tange as relações de trabalho, o artigo 60 do ECA afirma que “é proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz”. Ainda assim, impõe ao menor de idade uma série de restrições que tem como objetivo a garantia de sua saúde, como a proibição de trabalhos noturnos ou considerados perigosos. 

Como percebemos, o ECA dispõe de uma série de instrumentos legais que têm como objetivo assegurar à criança e ao adolescente uma proteção especial, através de um arcabouço de direitos (apenas alguns deles foram citados nas linhas anteriores). Porém, o Estatuto também prevê o cometimento de ato infracional pela criança, onde são dispostos medidas de caráter protetivo, e pelo adolescente, quando, além de medidas protetivas, também podem ser aplicadas sanções sócio educativas. 

O artigo 112 do ECA, que trata das medidas sócio-educativas, afirma o seguinte: 

"Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I – advertência;
II – obrigação em reparar o dano;
III – prestação de serviços à comunidade;
IV – liberdade assistida;
V – inserção em regime de semiliberdade;
VI – internação em estabelecimento educacional;"
 

Como podemos perceber, é falsa a idéia de que o menor infrator permanece impune ante o cometimento de algum delito. Ao contrário, recebe punições proporcionais ao seu grau de maturidade e aprendizado. A correta aplicação dessas leis é que se trata de algo questionável. 

Avaliação dos 22 anos do ECA 

O surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente se deu apenas dois anos após a formulação da Constituição Cidadã, como ficou conhecida a carta promulgada em 1988 sob os escombros da ditadura militar. Nasceu, portanto, em um momento de euforia – em que pese a crise econômica vivida na época – onde o povo brasileiro começava a acreditar que era possível por ordem na casa. Um ano antes, em 1989, Fernando Collor de Melo era eleito presidente da República pelo voto direto em uma acirrada e polêmica disputa com Luis Inácio Lula da Silva, após 21 anos de eleição indireta para o mais importante posto de comando do país. 

O ECA, Lei 8.069/90, tornou-se um dispositivo legal inovador e raro em todo o mundo – até hoje são poucos os países que adotam legislações específicas para a proteção da infância e da adolescência. Seu objetivo: garantir aos menores de 18 anos direitos fundamentais até então negados. 

Após 22 anos de aprovação do Estatuto, a reflexão sobre o seu sucesso ou fracasso dominou diversas discussões que frequentemente ocorrem. Durante esse período, não foram poucas as audiências públicas, sessões especiais, passeatas, etc;



Como era de se esperar, a pluralidade de opiniões demonstradas foi tamanha que seria impossível afirmar que existe um “consenso” acerca do papel exercido pelo ECA durante esse período. No entanto, fica o sentimento de que fracasso e vitória ao mesmo tempo. 

Fracasso porque, embora a situação das crianças e adolescentes brasileiros tenha melhorado, grande parte do Estatuto ainda não passa de letra morta. O direito à educação pública de qualidade e próximo à residência ainda não é respeitado: 53% dos adolescentes de 15 a 17 anos estão fora da escola. Às milhares de crianças que passam o dia nas sinaleiras, não é dado o direito de brincar e se divertir. 

Hoje, 17,2% dos 61 milhões de crianças e adolescentes do Brasil vivem em residências sem saneamento básico nem água encanada e mais de 90% não tem computador em casa! E ainda tem gente que diz que vivemos na era da democratização das comunicações! 

Sem contar que, embora tidos como principais autores da violência, as crianças e adolescentes são justamente as suas principais vítimas: enquanto que menos de 10% dos crimes são cometidos por menores de 18 anos, 68% das mortes de pessoas de idade entre 15 e 18 anos são provocadas por causas externas (acidentes, homicídio ou suicídio). 

No entanto, apenas a existência do Estatuto já representa uma vitória na luta em defesa das crianças e adolescentes. O fato de que a grande maioria de suas determinações não sejam cumpridas não desqualifica a importância de sua existência: ao contrário, coloca como pauta prioritária a defesa de sua verdadeira aplicação. 

A redução da maioridade resolve os problemas da violência? 

Recorrentemente o debate sobre a redução da maioridade penal é trazido à tona, sempre quando algum menor de idade comete algum crime chocante que, impreterivelmente, tem como vítimas cidadãos da classe média alta ou classe alta.



No entanto, a redução da maioridade para 16 anos ainda está muito longe de ser consenso no seio da sociedade, já que, embora a maioria da população apóie a medida, seus defensores têm como ponto fraco a ausência de argumentos técnicos que justifiquem a redução. Já os opositores da redução tem que explicar o porquê um garoto menor de idade que comete um crime deve ter tratamento diferenciado dos demais cidadãos. Mas para ajudar no esclarecimento da questão, existem alguns questionamentos que podem contribuir para o debate: 

1. O sistema carcerário brasileiro recupera alguém? Colocar um indivíduo menor de idade na cadeia vai contribuir para a sua ressocialização? 


2. O que é melhor: tratar um problema pelo caule ou pela sua raiz? Ou seja, qual o verdadeiro motivo que causa a entrada de milhares de crianças e adolescentes para o mundo do crime? A falta de acesso à educação, moradia de qualidade, emprego, saneamento básico e de perspectiva tem alguma relação com isso? 


3. As crianças e adolescentes do país são vítimas ou culpadas pelos altos índices de criminalidade? 


4. O que é melhor: aplicar o ECA, que define punições ao menor infrator, ou modificá-lo? 

Definitivamente, não há a menor possibilidade de o sistema carcerário brasileiro recuperar ninguém. Não o faz com adultos, não fará com adolescentes que ainda estão em processo de formação de sua personalidade e consciência. Pelo contrário, será uma verdadeira "Universidade" do crime, onde o adolescente entrará com seus 16 ou 17 anos e, anos mais tarde (ainda jovem) retorna pra sociedade com ainda mais vícios.



Além disso, não podemos perder a perspectiva do óbvio. Porque nos locais onde existe escola de qualidade, moradia decente, saúde pública e garantia de emprego as taxas de criminalidade são menores? Portanto, é claro que a prioridade é fazer com que os adolescentes tenham acesso à esses direitos historicamente negados na prática. Afinal, não restam dúvidas de que, se existem alguns que são levadas à criminalidade, muito mais deles são vítimas de um sistema de organização da sociedade que as excluem do direito à uma vida digna. Antes de serem tratados como delinquentes e criminosos, crianças e adolescentes são vítimas da exclusão social.

Considerando todos esses elementos, creio que o Brasil colherá frutos muito melhores se, ao invés de modificar a legislação para atender a interesses criados pela mídia, ponha em prática de fato os objetivos assegurados na lei.

Embora a redução da maioridade não esteja, nesse momento, no centro das atenções do Congresso Nacional e da própria mídia, os setores da sociedade civil organizadas devem permanecer atentas já que, como mostra a experiência, essa discussão pode ser novamente posta em pauta na medida em que os setores conservadores (incluindo a imprensa) decidam que tem clima para isso. Mas até lá muitas águas ainda vão rolar e a luta pela efetivação dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros permanece.


¹ Texto originalmente publicado em novembro de 2008 e reeditado em fevereiro de 2012.
² Estudante de Direito do Centro Universitário Jorge Amado - UNIJORGE (Salvador-Bahia).

REFERÊNCIAS 

ABRAMOVAY, M. Enfrentando a violência nas escolas: um informe do Brasil. In: UNESCO. Violência na escola: América Latina e Caribe. Brasília, 2003. 

DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara; OLIVEIRA, Thales Cezar de. Estatuto da Criança e do Adolescente. 4 edição. São Paulo. Atlas, 2008. 

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. ECA, Lei nº. 8.069 de 1990. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. 

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei 2848 de 1940. 

BRASIL. Código Civil. Lei nº. 10.406 de 2002. 

FUNDAÇÃO ABRINQ. Disponível em: 


UNICEF. Convenção sobre os Direitos da Criança.

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