Por Caio Botelho²
O livro “O Caso dos Exploradores de Cavernas”, do professor estadunidense Lon Fuller, traz ao leitor uma das mais intrigantes obras de ficção jurídica, tema de inúmeros júris-simulados e alvo de estudos da parte de estudantes do curso de Direito, em especial dos semestres iniciantes.
O fato é que, de forma bastante intrigante, é apresentado um polêmico acontecimento cuja sentença encontra-se muito distante de ser consenso no meio jurídico, já que, muito além de tratar do cumprimento ou não de determinada lei, o caso relatado traz para o centro das discussões um debate de fundo moral.
No fictício ano de 4299, um grupo de cinco espeleólogos da também inverídica comunidade de Commonwealth foram vitimados por um acidente que fechou a saída da caverna que estavam explorando. No entanto, o resgate enfrentou diversas dificuldades para conseguir retirar as personagens da prisão onde se encontravam, ocorrendo inclusive um acidente que ocasionou a morte de dez trabalhadores que faziam parte da operação de resgate. Ainda assim, foram necessários vinte e três dias para que os espeólogos fossem retirados da caverna.
Porém, no vigésimo dia na caverna, a equipe de resgate conseguiu fazer contato com os exploradores que, através de Roger Whetmore, indagaram sobre a hipótese de ceifar a vida de um dos cinco presentes para garantir a sobrevivência dos demais, haja visto que a previsão era de que o resgate demoraria pelo menos mais dez dias.
Ao adentrarem a caverna, descobriram que Whetmore teria sido o tal sorteado para cumprir a macabra tarefa de servir de alimento aos companheiros. Assim, foi iniciado um longo e penoso processo que resultou na condenação em primeira instância dos quatro espeólogos por assassinato. Ao recorreram, a decisão foi levada à Suprema Corte de Commonwealth.
O grande problema para os acusados é que o estatuto (espécie de Constituição ou Código Penal), afirmava que “qualquer um que, de própria vontade, retira a vida de outrem, deverá ser punido com a morte” (p. 21). E foi justamente essa a compreensão adotada pelo presidente do Tribunal, o juiz Truepenny, embora reconhecesse que a pena a ser comutada seria injusta devido às especificidades do caso. No entanto, deveria valer a máxima de que “lei é lei”, até porque, na compreensão do juiz-presidente, a justiça deveria ser feita sem “ofender a letra ou o espírito de nossos estatutos e sem oferecer encorajamentos pelo desrespeito da lei” (p. 22).
Mas opinião e voto diferente foram demonstrados pelo Ministro Foster, tomado por uma análise digna de um legítimo jusnaturalista. Para esse juiz, as leis positivadas não seriam aplicadas ao caso, já que os acusados se encontravam em seu “estado natural” e, portanto, imune às leis do direito positivo. Para defender a sua tese, o Ministro Foster apresentou a vida em sociedade como um atributo da lei positiva, e apontou o fato de que os espeólogos não se encontravam em “sociedade” naqueles fatídicos dias. Em sua opinião, os réus estavam “demovidos de nossa ordem legal” (p. 26) graças a natural perturbação causada pelo fato.
O segundo argumento utilizado para a defesa dos acusados era de que, em outros momentos, haviam sido abertas exceções ao cumprimento literal do estatuto, o que, segundo o juiz Foster, poderia ser repetido para evitar que fosse cometido uma injustiça. Para ele, o assassinato deveria ser considerado como legítima defesa.
O terceiro Ministro a se pronunciar foi o juiz Tatting que, embora tenha ficado neutro na votação, utilizou grande parte de sua explanação para desconstruir muito do que havia sido dito por Foster. Em sua opinião, um assassinato pode ser considerado em legítima defesa quando não existe a premeditação deste. Ou seja, uma legítima defesa é fruto de uma ação irracional e espontânea utilizada pelo homem para se defender de um perigo iminente.
O problema é que no caso dos exploradores de cavernas a diferença entre o primeiro contato feito por Whetmore com os médicos da equipe de resgate até a consulta sobre o assassinato havia se passado oito horas, o que demonstrava a existência de premeditação do crime.
Outra linha de raciocínio bastante interessante adotada por Tatting foi a demonstração de casos anteriores, a exemplo do episódio em que um homem foi condenado por roubar um filete de pão, ainda que apresentasse a justificativa de que estava com fome. Ora! Se uma pessoa havia sido condenada por roubar para se alimentar, porque deveria ser perdoado o assassinato com a mesma finalidade?
O próximo juiz a apresentar o seu voto foi o Ministro Keen que, ao se referir à justeza ou não do crime cometido pelos espeleólogos, afirmou que “é uma questão irrelevante para o cumprimento do meu ofício como juiz, que fez o julgamento para aplicar não os meus conceitos de moralidade, mas as leis do país” (p. 47). Acompanhando a intervenção de seu antecessor, também desfere críticas à Foster, dando a entender que sua defesa era secularmente ultrapassada.
No voto do Ministro Keen, novamente foi apresentada a idéia de que o direito positivo deve predominar sobre o direito natural, tendo em vista que as leis que regem a nação devem ser cumpridas sem exceções.
O último juiz a declarar seu voto foi o Ministro Handy, que defendia a tese de que o bom senso deveria prevalecer no caso e que o clima de comoção popular causado pela tragédia também deveria ser levada em consideração. Acompanhando o raciocínio de Foster, compreendeu que a tese de legítima defesa deveria ser acatada e os acusados absolvidos.
Como houve empate nos votos dos juízes da Suprema Corte, foi mantida a decisão anterior de considerar culpados os exploradores de caverna, encerrando o caso, pelo menos no campo jurídico.
Considerado o caráter emocionante e polêmico do caso relatado, faço questão de apresentar nas próximas linhas um sexto voto – o meu, já que, na condição de estudante e futuro operador do Direito, não poderia permanecer omisso e neutro nessa questão. Vamos aos fatos.
É importante iniciar com a ressalva de que, do ponto de vista moral, compreendo perfeitamente a decisão tomada pelos espeleólogos de garantir a prorrogação de suas vidas o suficiente para que o socorro pudesse chegar. Muito provavelmente tomaria a mesma atitude caso estivesse envolvido em tal situação. Também é relevante levar em consideração que as informações passadas aos réus era de que o socorro demoraria mais dez dias, muito após os seus parcos recursos se esgotarem.
Também compreendo como de fundamental importância inserir no Direito positivo normas com conteúdo moral. Toda essa confusão jurídica poderia ser evitada se fosse incluída na lei que tratava do tema uma série de circunstâncias que poderiam ser consideradas atenuantes, como, por exemplo, a inexistência de outra saída senão o assassinato. Por isso, uma certa quantidade de anos de prisão seria, ao meu ver, a pena mais adequada.
No entanto, estamos a julgar uma lei que já existe e que dispõe muito claramente sobre o fato: quem comete assassinato deve sofrer a pena de morte. A meu ver, a tese da legítima defesa é irreal a partir do momento em que Whetmore não apresentava risco á vida de seus colegas.
Outra questão a ser levada em conta é a de que, se na opinião de Foster e Keen, os valores morais deveriam influenciar no julgamento, onde estaria o conteúdo absolutamente imoral no ato de assassinar uma pessoa e comer a sua carne?
Também questiono os depoimentos apresentados, vejamos o porque: quem fez o contato com o resgate foi Whetmore, que horas mais tarde também fez a consulta sobre a possibilidade de utilizar a carne humana como alimento. Até aí tudo bem.
Mas o inconveniente é que a informação de que teria sido Whetmore o autor da idéia, bem como de que teria sido ele o sorteado, partiu exclusivamente de seus próprios colegas e assassinos. Que garantia temos de que tal sorteio havia mesmo ocorrido? As únicas testemunhas são justamente seus assassinos, os maiores interessados em “responsabilizar” a vítima pela decisão.
Me preocupo também com o precedente que o caso pode causar. Refiro-me ao acontecimento relatado por Tatting do homem condenado por roubar um pão por que estava com fome. Caso a decisão fosse de absolver os réus pelo fato de o assassinato ter sido cometido por necessidade de se alimentar, todos os miseráveis do país poderiam se utilizar a mesma justificativa para roubar e até mesmo matar. E para quem apontar que, no caso dos exploradores havia ainda o fator desespero, faço referencia a um pai de família que vê seus três filhos pequenos passando fome. Ele também não poderia se utilizar dos mesmos argumentos?
Quero, portanto, concluir minha participação lembrando o fato de não nos encontrarmos mais em estado de natureza. Hoje, a positivação do Direito é fundamental para a sobrevivência humana, muito por conta também da escassez de valores morais consensuais para o conjunto da sociedade. Sou radicalmente contra a pena de morte e, dentro do Estado de Direito faria o possível para suplantar tal lei, utilizando os instrumentos democráticos dispostos para isso. O que não posso fazer é entender que um julgamento pessoal de valor deve estar acima dessas leis: esse pensamento pode, sem sombra de dúvidas, nos levar à uma barbárie moderna.
Por essas questões, e lamentando pelos quatro exploradores de cavernas, voto pela condenação dos acusados.
¹Resenha originalmente publicada no extinto Blog do Caio, em novembro de 2008.
²estudante de Direito do Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE), Salvador-Bahia.
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
15 comentários:
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DISCORDO AO CITAR O EXEMPLO DO PAI DE FAMILIA COMPARANDO COM O CASO,POIS SÃO CASOS DIFERENTES.UM E DE HOMENS ISOLADOS LUTANDO PELA SOBREVIVENCIA.NAO HAVERIA OUTRA FONTE DE ALIMENTO.OUTRO E DE UM PAI EM UMA SOCIEDADE ONDE PODERA BUSCAR OUTROS MEIOS PELA SOBREVIVENCIA.NO CASO DO QUE ROUBOU O PÃO ATE CONCORDO.MAS MUITO LEGAL A SINTESE O COMNENTARIO.
ResponderExcluirCONCORDO, DESDE QUE NÃO SE JUSTIFICA RETIRAR A CHANCE DE SOBREVIVÊNCIA DO OUTRO EXPLORADOR.
ResponderExcluirDEIXASSEM Q A SELEÇÃO NATURAL SE ENCARREGASSE DE ESCOLHER.
Ao meu ver, esse caso foi bem resolvido e esclareçido como deveria ser, por isso que os "assassinos" pagaram pelos seus "crimes". Mas, no momento do desespero ninguem pensa em nada ao não ser SOBREVIVER, sendo assim, agindo de forma "Egoísta".
ResponderExcluiré a chamada: luta pela sobrevivencia. No caso, eles não teriam opção se não comer a carne humana para sobreviver, agora, não daria para saber se realmente poderiam esperar um pouco mais para sairem da caverna, é uma questão muito complicada. Informaram mais 10 dias, mas seria dificil de sustentar tal informacao das condicoes que eles estavam.
ResponderExcluirUma coisa eu concordo plenamente com o exposto acima: lei é lei. Se fossemos levados pela Lei natural, haveria um barbária moderna e se instalaria o caos. Enfim, ou tem lei ou não tem. Se tem é pra ser cumprida, mesmo que seja injusta em certos casos. A moral lógico, pode prevalecer, porem, no estado democratico que vivemos, seria um suicidio viver sei o Ordenamento Juridico.
Discordo tbm ao utilizar o exemplo do pai de família, até porque ele poderia buscar outros meios,como procurar um emprego...
ResponderExcluirmas gostei muito desta resenha. Parabéns!!!
Achei interessante, porém, aí vai uma observação: a comprovação de que foi Whetmore que sugeriu a ideia do sorteio, baseia-se em que essa proposta foi realizada pelo mesmo através do transmissor para o médico, sendo assim, os 4 exploradores sobreviventes não eram as únicas testemunhas do ocorrido. Parabéns pelo seu trabalho.
ResponderExcluirconcordo, pois existe uma lei para cumprir, embora eles não estivessem outra escolha o certo era esperar que a lei do mais fraco vinhessem a ser cumprida, pois um morreria primeiro.
ResponderExcluirMuito bom a sua resenha meu caro. . Mas seria mais prudente se eles estivessem esperado até um morrer primeiro, isso iria ser algo natural, um com certeza iria morrer primeiro, então não ocorreria todo esse rolo.
ResponderExcluirNão concordo com pena de morte.mas acho que os exploradores deveriam ter uma pena já que esta na constituição que temos direito a vida.e o caso á parte do homem que roubou um pão por estar com fome não é justificado pois sempre há outro meio para conseguir o que quer sem precisar prejudicar ninguem
ResponderExcluirPor viver em jma caverna,sera que ali nao teria outro modo de sobreviver,ate o resgate.
ResponderExcluirEm primeiro lugar, todos os argumentos se contrapõem. Não temos como justificar com "MORAL" a ação de ceifar a vida de outrem. Em segundo lugar, é imprescindível sim aplicarmos o direito positivo, lei é lei, assim como o direito é. Quando saímos da redoma do intelecto, da razão para basearmos ações bárbaras, a ação por si só já se faz transgressiva, pois mesmo não estando sob o olhar direto da coerção do executivo, a evolução de liberdade das partes, desloca-se para a vida social, sendo sujeitos de direitos e deveres.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEu só não concordo em aceitar que possa julgar com pena de morte alguem que mata para sobreviver, e, matar para fazer a justiça condenando os reus a pena de morte....isso é legal?quem colocou essa lei tbem não teria premeditado uma situação?afinal de contas só um teve a idéia de matar para sobreviver, a diferença é que ele morreu,então quem premeditou o crime?caso ele sobrevivesse quem responderia pelo crime?
ExcluirEm partes discordo de seu raciocínio por mencionar bastante sobre a situação dos miseráveis. Ao teclar várias vezes no mesmo ponto que levando em conta a justificativa do assassinato pela sobrevivência muitos poderiam tomar tal atitude e alegar que cometeu tal ato porque também estava faminto, você foge um pouco do ponto de vista dos limites geográficos. Tais miseráveis não estariam presos em uma caverna e impossibilitados de recorrerem a outros meios para se alimentar sobrando apenas a opção do crime pela sobrevivência.
ExcluirTenho que fazer o mesmo, já o livro três e na última havia decidido que meu parecer seria favorável à absolvição dos já então condenados. Contudo, lendo sua resenha, me atentei a fatos que até então não havia observado, como por exemplo, que todas as evidências como a de que foi a vítima que propôs o acordo, é uma tese relatada pelos quatro assassinos. Deste modo, irei reanalisar minha teoria, e por isso, venho agradecer por ter postado tão excelente trabalho, trabalho este que mudou minhas concepções e me instigou à uma análise mais sucinta do caso.
ResponderExcluirAtt,
Milton L. Lino